[Filhas. Amor de pai. História de pais]
por Jean Menezes de Aguiar, quinta, 22 de setembro de 2011 às 14:58
Ser pai de filhas, só filhas, deve ser um espetáculo em todos os casos, sem um homem para atrapalhar o agarramento com seu tolo complexo trofeico de macho que um dia será eretizado e um dia deixará de ser, humilhando-o pela perda da tal potência. Filhas são especiais, no reino felino são as leoas que caçam, correm, golpeiam e matam. O matar fêmeo é belíssimo, visa a alimentar a prole e o próprio macho. O ocaso das filhas pode se dar por sua morte, certamente a dor máxima de um pai, visitar um túmulo de filho em prantos surdos ou berrados de um pedaço seu que foi arrancado quando ele talvez desse a vida para aquela não extirpação.
Há outras perdas, severas e impiedosas a matar um pai aos poucos e silenciosamente, seja num momento de alegria que ele daria tudo para dividi-lo com as filhas, seja em momentos de conquista, paladares novos, descobertas, tristezas, inseguranças, bebedeiras, cansaços, doenças e vitórias. A relação filha pai deve ser a mais séria que há, a mais profunda e mais densa. Filhos não são criados para o amor, nessa sociedade boçal, só para fuder meninas. Só as filhas o são, e pagam preço alto pela ignorância desses sujeitinhos aí assim. O Édipo poda a mãe em cobrar amor do filho, já a carência estimula o pai a buscar colinho no pequeno e frágil colo da filha. Se o menino não aguenta o pai porque entre eles há o jogo disputal da força, a menina com a doçura aguenta totalmente, é o que o pai necessita, já que contra ela ele jamais oporá a força. Ser pais de filhas, o máximo está aí.
Passei a conversar com amigos como é ser pai de filhas, pergunto e ouço longos e amorosos relatos, atentamente. Vejo os olhos brilharem infinitamente em pais de filhas, pelo orgulho, pelo mimo e pela esperança. Filha é geradora de esperança, porque um dia emprenhará e fará o pai um avô, de seu próprio ventre. Filha compõe-se em véu no altar, uma estrela única no casamento, já o filho se perde no meio da multidão com tantos iguais a ele, o noive não vale nada, só a noiva é brilhante. Há anos coleciono histórias de pais de filhas, lindas, poéticas, densas e doces. Admito que raros pais sejam efetivamente profundos na criação, no sentido de agudizarem o diálogo ao infinito, sem pudores, sem cerimônias, sem meias palavras, esses são os melhores, os mais amados. Pais que olham pras filhas e cobram – diz eu te amo, vai, diz 5 vezes só pra mim!
Tenho na memória um certo pai que amava suas filhas, apenas filhas, tão intensamente quando podia, afinal ele era um homem dos mais densos que conheci, um advogado batalhador e guerreiro. Trago este amigo perdido nos idos da vida no coração. Vejo seu sorriso mais velho neste Facebox e busco suas filhas e me maravilho. Ele conseguiu fazer delas o espelho de o que ele é, tenho certeza que sim. Cada uma das suas mais lindas que a outra, e todas, a cara daquele pai amoroso, denso, entregue e necessitado delas. Lembro de certos momentos da adolescência de uma ou de outra aos quais ele, rabugento, reclamava de uma ou outra, mas o pano de fundo era apenas um, o amor. Suas quatro filhas são o exemplo da vitória que qualquer pai gostaria de ser e ter. Acompanhei de perto por um bom tempo a criação dessas meninas e aquela relação ficou em mim como se eu pudesse ser aquele pai, quem dera, aquele homem tão amado quanto este exemplo de pai que foi e continua sendo.
Sonho pelo sonho dos outros e me sinto feliz. Minha felicidade quieta e particular neste momento talvez seja parecida à retratada no poema A alegria dos peixes, a vida de Chuang Tzu, quando ele e Hui Tzu atravessavam o rio Hao. Após um diálogo, Tzu interrompe e afirma: “O que você me perguntou foi ‘Como você sabe o que torna os peixes felizes?’ Dos termos da pergunta você sabe evidentemente que eu sei o que torna os peixes felizes. Conheço as alegrias dos peixes no rio através da minha própria alegria, à medida que vou caminhando à beira do mesmo rio”. É isso. Consigo criar uma felicidade ouvindo histórias de pais sobre suas filhas e lembrando daquele amigo. Por essas filhas e por esses pais consigo conhecer as alegrias deles através da minha própria alegria, à medida que ouço suas histórias.
A “poesia” aí, ramo que Nietzsche reserva para o quarto dos fundos de alguma moral (A gaia ciência) se me apresenta como um pano morno para uma felicidade que se mostra fria e somente esse pano consegue aquecê-la a ponto de se tornar um linimento. Essa a beleza da vida, ter amigos para ouvir as histórias de filhas, orgulhosos, seguros e vencedores. Histórias de filhas para contar, esses pais têm e quanto são pedidas as histórias mais eles as contam. Experimente pedir a um pai alguma história de filha e verá. Alguns riem do interesse de porque se querer saber das filhas, mas nunca vi um pai se cansar de contar histórias de filhas.
Trabalhei com um coronel que perdeu uma filha com 17 anos numa situação simplesmente inenarrável. Encontrei aquele pai uma semana depois. O andar e o olhar dele me marcaram a vida profundamente, nem preciso detalhar. Nunca esquecerei. É a antítese de quem tem histórias de filhas. Este pai terá e contará as histórias de sua menina por toda a vida, mas até o décimo sétimo ano da vida dela, quando então as histórias param, simplesmente param. Ele não tem mais o que contar dela. Ficou outra, mas aquela se foi. A vida não é composta apenas de histórias vitoriosas das filhas, mas de outras também.
Este texto passa por incontáveis clichês, mas falar de filhas é assim. Não vejo os pais aos quais coleciono minhas histórias de filhas se importarem a mínima para clichês, eles não estão filosofando, não estão numa banca de exame. Eles apenas vivem a experiência máxima de serem pais de filhas. Outro dia estava vendo um pai que tem um filho e duas filhas. Quando eles se foram do nosso encontro, as meninas o abraçaram como duas moças a proprietarizar o pai, uma de cada lado, há dominialidade ali, coisa que o menino não vive. Elas só admitem dividir o pai entre ambas, já que a relação com a mãe é outra. Enquanto pai elas reinam absolutas num código que talvez nem ele saiba, ou nem elas confessem. Assim é a vida de pais de filhas.
Certa vez fui instado diretamente por um pai a cuidar bem das suas três filhas pelo tempo que eu fosse viver com elas. Comprometi meu coração e minha razão na jura de fiel cumprir a missão. Naqueles anos, desenvolvi carinhos, mas elas não eram minhas filhas, não sei, por ali, nem de longe, o que é a experiência. Quando tento comparar o brilho dos olhos das histórias dos pais às que tenho daquele tempo não restou nada comparável em mim ao que vejo na força dos pais. A força. A força dos pais. Se da física o conceito de “força” é um dos mais difíceis, nas relações de pais e filhas há uma força oculta que move outras forças ostensivas e visíveis e tudo se torna poderoso e denso. “Quem dera que eu dera um certo amor”, escrevi outro dia numa letra de música com certa licença poética, imaginando que há amores que simplesmente não se vão, apenas ficam, adormecidos ou mortos, mas ficam.
Vejo o amor dos pais por suas filhas assim. Há berros, zangas, brigas, xingamentos, insultos, há o que tiver de haver, de pais para filhas; tenho ouvido isso. Mas há o pano de fundo de um amor infinito, eterno que não quebra, mesmo que as filhas o reneguem, o amaldiçoem, o escorracem e se separem dele. Ouvi uma história assim, dilaceradora e à pergunta se aquele pai ainda amava suas filhas a resposta foi imediata. Faço esse texto misto de piegas com bobo, dirão uns, em homenagem aos pais que têm filhas. O escritor não acerta em tudo, escreve bobagens também e certamente esta é mais uma bobagem, isso quando o que ele considera bobagem é o único que se presta de sua produção. Devemos viver nossas bobagens publicamente, aí sim é vivê-las. Há quem "não tenha" bobagens para viver, talvez haja, não é o meu caso.
Agradeço aos pais pela alegria que eles me dão, deixando eu ouvir as histórias de suas filhas, suas infinitas, perfeitas, maravilhosas, lindas e eternas filhas. Para eles elas são mais que isso, mas o léxico ainda não inventou palavras e eu não estou sabendo descrever muito bem a sensação. Jean Menezes de Aguiar.
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