Áurea Martins, Cantora, linda, amada. Esta é poderosa.
Artigo publicado no Jornal O DIA SP, semana de 13.fev.13
Pessoas
geniais produzem frases geniais, do tipo “Políticos e fraldas devem ser trocados de tempos em tempos pelo mesmo
motivo”, Eça de Queiróz.
Ler os geniais é uma delícia.
Já para outros, o pensar parece ser um sacrifício. “Estupra
mas não mata”, Maluf. “Ética é meio e não fim”, Renan Calheiros. “O ladrão do
meu rolex merece pena de morte”, Luciano Huck. Agora veio isso: "Importante
é ter corpão, não precisa nem cantar direito. Ainda bem que sou gostosa",
Ivete Sangalo, cantora baiana.
Sangalo não está errada. Nem sozinha, o que é o pior.
Prestou um serviço com sua verborragia. A baiana disse o que muitos sabem, mas
somente uma mulher e cantora poderia dizê-lo sem ser patrulhada, ainda que a
frase possa conter, em termos musicais, o patético em si.
É claro que não é coincidência que cantoras
atualmente tenham que ser bonitas e gostosas, bem guardadas as proporções. É
como se os gestores da fama musical tivessem resolvido: de “agora” em diante só
queremos cantoras tesudas. A qualidade
musical pode ficar em segundo plano. Às vezes em quinto.
Como músico profissional tive a sorte de tocar com a
hoje famosa Áurea Martins, talvez a maior cantora da noite do Rio. Áurea, para
ouvintes qualificados ligados à qualidade (ou isso não existe?) sempre foi a
mulher mais linda do mundo, e esta beleza aqui é outra. Mas para os padrões desse
sucesso ivetiano, a deusa Áurea está fora de medida. Leny de Andrade é outro
exemplo. Será que a negritute total, o encanto, a qualidade do timbre e a voz
de Áurea e a ginga de Leny, e “apenas” isso, em uma jovem qualquer hoje fariam “sucesso”?
No paradigma ivetiano, não. Ganhou-se ou perdeu-se com a busca de paniquetes vocais?
Nádegas são ótimas, mas não cantam, e o assunto é canto.
A massificação do paladar musical veio para maior número
de vendas e não como uma melhora da qualidade. O maestro Julio Medaglia revela
que as 4 principais gravadoras do país demitiram o diretor musical e
contrataram no lugar um “diretor de marketing”. Acabou a mentira. Só vamos
combinar: vender um trilhão de Cds não tem nada que ver com qualidade. Nunca
teve.
Agora, ainda, as cantoras do padrão ivetiano – coxas,
malhação, silicone, personal, gravidez pela Tv, namorado-artista, e uma vida
social dependente dos Tvs-famas/internet –, devem estar enfurecidas. Até aqui
conseguiam disfarçar a realidade. Mas a rainha do canta-pra-pular ou pula-pra-cantar,
Ivete, revelou o “segredo”: para ser cantora basta ser gostosa. É o duelo
música reflexão e qualidade versus música furacão e banalidade. Nada
contra o balanço: em shows de Tim Maia, Djavan, Seu Jorge, Lulu Santos, Ney
Matogrosso, ninguém fica parado, todo mundo dança. Mas a qualidade musical é
inconfundível.
Há um outro segmento, na atualidade, diferente. É a
música pretensamente intelectualizada, cult mesmo. Capitaneada por moças
muito bem nascidas em São Paulo, esbanjando sobrenome e fingindo engajamentos
no “chatissimamente correto”. Aqui também há um gestor estético na seleção
inicial. Quando lança uma nova cantora no mercado não abre mão da aparência.
Ivete não falou bobagem. Ela sabe que se tirar o show e o palco de seu canto,
sobram mesmo as belas pernas.
A situação nos programas Ídolos é outra. O Ídolos
autêntico, da Record, tira sarro das esquisitices e gera diversão, além de
mostrar gente boa. Já o Ídolos-o-meu-é-o-melhor, da Globo quer se mostrar,
supostamente, comprometido com a qualidade. Promete que o jurado não conhece o
candidato e tem aquela mise-en-scène de ficar de
costas. Ok ok. Nestes
programas o interesse imediato jamais é o canto em si, mas a audiência
televisiva “do programa”. E audiência é um mix de coisas. O feio e o esdrúxulo,
por exemplo, podem gerar pontos. É a novelização da escolha dos novos artistas,
em capítulos, o Bbb musical, mas musicalmente válido.
Ivete foi cultural, por isso antropológica. Ela e seu
avião são subprodutos desse sistema. Não se pode condená-la. Quando ela
reconhece o que muitos músicos, diretores e críticos sabem, que ela não canta bem
(e não só ela!) e vive mais do corpão, ajuda a pôr em xeque o sistema infame da
não qualidade. O desesperador é saber do triunfo de um sistema que “obrigou”
deuses como Tim Maia, Djavan e outros tantos a terem que montar seus selos e
estúdios, porque as gravadoras lhes fecharam as portas não poucas vezes.
Se a qualidade musical e de canto, para o cantor, foi
mesmo “substituída” pela estética, mais produção, enfeites, encantos visuais,
jogadas de mícia etc., há aí uma nova-velha cultura. Meu pai dizia que na
década de 1950, quando Cauby Peixoto voltou dos EUA e apareceu na capa de uma
revista com peito nu, ensaboado, foi um escândalo. O idolatrado Cauby me
confirmou a história quando trabalhei como músico dele. O escândalo é uma
técnica antiga, mas vamos combinar: Cauby canta.
Há
comparações fáceis. A música de discoteca antiga possuía harmonia e melodia
belíssimas. Atualmente, é um “tum tum tum” ritimado. Uma explicação: até
pessoas sem qualquer musicalidade conseguem acompanhar o ritmo marcado. Daí não
há necessidade de “música”, só de ritmo. Essa massa quer pular e brincar, não
ouvir música, e que fique claro: é um direito. Só não venha dizer que “tudo é a
mesma coisa”, que tum tum tum tem qualidade musical.
Vive-se no Brasil, sem qualquer ode ao “antigamente”,
uma sociologia da degradação musical. Entraram em cena outros valores para se achar
um cantor ou uma cantora “bons”. Não mais a qualidade musical, o gogó. Casa
noturnas famosas no Rio, da década de 1970/80 como 706, Special Bar, Chico’s,
21, produziram figuras como Djavan,
Alcione, Emílio Santiago etc. Mas naquela época a cantora não era medida pelo
quadril. O que valia para ouvintes que buscavam a qualidade do canto era o
sonho auditivo. Cada vez mais estes ouvintes se tornaram órfãos. Jean Menezes de
Aguiar