Meu irmão, olha isso, fala sério. Vai desacatar ou pedir em casamento? (Feministas, deem um tempo tá?)
“Arranhe um altruísta e verá um hipócrita sangrar.”
Michael Ghiselin, The economy of nature and the evolution of sex. Berkeley, University of California Press, 1974
O presente texto contém palavrão. Não é para criancinhas ou quem queira se assustar ou se chocar.
O Código Penal diz: “Art. 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela. Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.” Isso simplesmente não é a regra, ninguém “desacata” gratuitamente ninguém, a vida em sociedade, desde o estudo da primatologia, não contém essa cepa comportamental do desacato e da agressão. Ernst Mayr registra que há humanos com tendência inata para comportamento agressivo, depois que se descobriu o mesmo em chimpanzés (Biologia, ciência única, p. 54), mas essa jamais foi a regra. É totalmente falso o mito de origem de que a espécie humana vem se dedicando à guerra e, como se falou na década de 1960, em plena Guerra Fria que os humanos chegaram a ser considerados “primatas assassinos”. Esses e outros besteiróis estão pacientemente desmontados com a ciência de Frans de Waal, A era da empatia – lições da natureza para um sociedade mais gentil, p. 40. O artigo 331 do Código Penal não se sustenta sociobiologicamente, sua errância é ínsita e ontológica, e a explicação é velha de guerra: foi parido num momento de ditadura brasileira. Pouco interessa se nesse mundo pós-moderno e corporativo, formalista ao extremo – ou seja, imbecil –, composto por obedientes de plantão, em outros países haja o crime.
Ninguém acorda um belo dia com o furor de desacatar funcionário público e vai a um guichê do Estado querendo criar caso. Pode haver um bate boca; a figura jurídica da retorsão imediata; respostas e atritos, mas aí já não mais existirá o crime. Noutra análise, sociojurídica, quantas pessoas nos últimos 50 anos foram condenadas e cumpriram essa pena patética da lei? Esse crime simplesmente não existe. Essa é uma realidade social: o desacato é um crime fantasmático, assusta os assustáveis.
Em artigo publicado há alguns anos no jornal, discuti o desacato. Mas pensando bem, sua estrutura psicossocial de padecimento é bastante interessante. Quem se sente desacatável, desrespeitável, afetável, magoável, padecível, sensibilizável, ferível ostenta uma personalidade duplamente problemática. Por um lado é, sabidamente, um autoritário, um ortodoxo – com grandes chances de ser um imbecil, desses que tudo que vê fora do padrão considera “desrespeito” (oh gente chata e cansativa) –. A figura filosófica do desrespeito comporta análises “cruéis”, ou interessantes. Esse sentimento é próprio dos “fracos”, quebradiços que a qualquer palavra mais forte que se lhes dirija põe a mão nos seios, ou melhor, no peito e “se sente desrespeitado”. Haverá aí: 1) o que se pode chamar de vontade do padecimento, que Lou Marinoff (Mais Platão e menos prosac) mostra que quem quer ter problema é que tem problema; 2) uma incapacidade e incompetência reativas, oriundas da falta de conhecimento e sua segurança ínsita, uma que dê ao agente a possibilidade de encher a boca, calmamente e mandar, por exemplo, o ofensor tomar no cu sem grandes estresses; e 3) uma personalidade mambembe que efetivamente entroniza e recepciona a lesão.
Tanto as análises biológicas quanto as filosóficas possíveis ao estudo do desacato são razoavelmente válidas, porque o crime envolve um comportamento dos mais sensíveis, tanto no cometimento [ativo] quanto na recepção [passiva]. A sofribilidade ou o próprio padecimento psicológico que um desacato poderia gerar em situações normais, se manejado contra um agente estruturalmente seguro e estável, além de espirituoso e inteligente (burro jamais!), seriam imediatamente convertidos em resposta genial, mil vezes mais contundente do que a própria idiotice do desacatar formalmente considerado; bagunça intelectual da melhor qualidade; graça; gozação; e até risos incidentes sobre ou da pessoa desacatante. O agente desacatante, nesse caso, sairia efetivamente humilhado, rebaixado e destruído em termos de vôlei verbal se topar com um ser genial em termos de resposta e enfrentamento inteligencial. Mas essa leveza e intelectualidade, sabe-se, são raras.
No plano jurídico do crime há, efetivamente uma baboseira e idiotice completas, um crime próprio para pessoas imbecis que se sentem desacatados. Por outro lado, na estrutura formalista como a do Poder, composta essencialmente por pessoas conservadoras, positivistas, legalistas e basicamente tacanhas (ou será que o Poder é constituído de geniais, intelectuais, transgressores, pensadores, cientistas, artistas e criativos? Parece que não), a sedução do crime de desacato é o gozo fácil. Muitos lá querem ter inscrito na sua carteira funcional a advertência do desacato para “dá-lo” a um qualquer do povo quando se sentirem “ameaçados”. Assim, falam autoritariamente: “vou lhe dar um desacato...”, num estranho furor de dar alguma coisa.
Magalhães Noronha em seu livro narra o caso do cartorário que chama o advogado de jumento, vindo este a retrucar que o servente é um asno. Não se pode ver grande criatividade na resposta que, em primeira ou última análise, aceita certa equiparação animalesca entre advogado e serventuário. Pobre, essencialmente pobre a resposta. Mas o certo é que não há, aí, qualquer crime de desacato por parte do advogado em relação ao funcionário público. Autores italianos como Manzini e Manduca, ensinam que o que se protege não é a pessoa, a personalidade individual do funcionário público, não é o oficial, mas o ofício. Esta confusão não pode ser feita pela “autoridade”, achando, imaginando que a sua pessoa merece destaque especial. É o cargo que a lei protege. E mesmo assim, essa proteção é totalmente discutível, já que é um cargo pago pelo povo.
Os exemplos da doutrina são condutas absurdas e totalmente fora de padrão comum, como: cuspir no rosto do oficial de justiça; puxar o cabelo do oficial do cartório; atirar papéis no promotor de justiça; afirmar ao juiz, em audiência, que ele é um caça-níqueis; jogar urina no funcionário público; xingá-lo ou dar leve bofetada na face do policial etc., isso em Fernando Capez, Curso de direito penal. São exemplos de criaturas patéticas e desgovernadas. Que falta faz a elegância genial a esses seres, ou a criatividade.
Já Rocco, sobre o desacato, ensina que no Estado moderno não é o princípio da autoridade que deve ser defendido, mas o princípio da legalidade. Isso é um espetáculo! Assim, exemplos da doutrina (Bento de Faria, CP anotado) que não são desacato: 1) pôr-se a pessoa a fumar e ler jornal ao ser autuada em flagrante; 2) empurrar o funcionário, fechar-lhe bruscamente a porta de casa para obstar a sua entrada legítima; 3) proferir palavras de mau humor, desabafo; 4) expressões de cólera proferidas irrefletidamente no calor de uma discussão; 5) excessos de linguagem por quem está embriagado; 6) agressão à namorada, funcionária pública, dentro da repartição, por questões particulares; 7) resistência a ordem ilegal de prisão ou a agressão de agentes da polícia; 8) Se a ofensa for determinada por atividade não funcional, e não tiver relação com a função, ainda que se trate de funcionário; 9) quando o conflito entre o funcionário e o agressor teve origem pessoal em um motivo particular, alheio à função ou ao ato funcional praticado; 10) quando a agressão partiu do pretendido desacatado, que excedeu com atos arbitrários, os limites das suas atribuições; 11) ofensa a instituições; 12) crítica feita com veemência, tratamento pouco cordial e frase deselegante; 13) as expressões “analfabeto” e “ignorante”, por si sós, não caracterizam o desacato, uma vez que a ofensa desse jaez pode ser dirigida ao homem, simplesmente, e não à função pública (RT 403/276); 14) a incontinência verbal, em clima de exaltação mútua entre acusado e ofendida, com ofensas recíprocas, não configura o delito de desacato (RT 520/375); 15) não age com intuito de desacatar e sim de verberar conduta funcional anormal e negligente aquele que, exasperado, acusa funcionário de incompetência e relaxamento (RT 5233/474).
É impressionante como até atuais netos da ditadura continuam a acreditar na existência do crime de desacato, conforme burramente difundido, mantendo um medo da polícia em geral. Que poder o cultural de manter essa imagem de medo e intimidação, quando nada mais disso existe. Estudantes de direito que deveriam manejar a situação com isenção e técnica optam, impressionantemente, por continuar a temer e a reverenciar como se tivessem que fazê-lo. O conhecimento técnico do crime é essencial para que confusões mentais e de comportamento não sejam feitas e para que o ouvido do contribuinte, quem paga a conta, dinheiro, não vire um urinol com asneiras de “autoridades” que acham que podem ameaçar, intimidar, ofender, apenas porque se veem como autoridades.
A Constituição criou, tecnicamente, o Estado atrelado e obrigado a respeitar a dignidade da pessoa humana, leia-se o cidadão. Aquelas palhaçadas viciosas como um poder de polícia anômalo e exacerbado, um conceito de autoridade demente e outras idiotices que ainda ornam a cabeça de jumentos estatais não se sustentam mais. Enquanto a prevalência à dignidade da pessoa humana não “sair de cena”, e não sairá, situações como esse crime vagabundo e alegrador de filosoficamente analfabetos, não terão qualquer valia. Pode estar na Lei, mas fora do seu padrão microscópico de consumação fantasiosa, não vale nada esse tal do desacato. Mesmo que tolos de plantão morram de medo dele e espertalhões com contracheques oficiais queiram difundir medo. Jean Menezes de Aguiar
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