Luz vermelha na entrada
Artigo publicado no Jornal O DIA e no O ANÁPOLIS, semana de 23.5.2013
Ouve-se muita reclamação de advogados, sobre o
sistemático juízo negativo de admissibilidade dos recursos extraordinários. Há
até nome para isso: jurisprudência defensiva. É a prática utilizada por
tribunais para dificultar recursos judiciais. Parece não haver dúvida que a
esmagadora maioria dos recursos para o STF, recurso extraordinário, e para o
STJ, recurso especial, não é admitida. Será que a também esmagadora maioria dos
advogados não sabe recorrer?
Na
sociedade consumista e da intolerância, todo mundo quer encontrar imperfeições
e defeitos nos outros. Mas aqui, a reclamação dos advogados procede. Essa
jurisprudência defensiva parece mostrar caninos e causar estragos generalizados
a cada dez minutos.
O falecido Humberto Gomes de Barros, no discurso a presidente do STJ, em 2008, em franqueza desconcertante, ressaltou preocupação com o destino do tribunal. Afirmou que para escapar ao papel de “reles
terceira instância” o STJ adotou a “jurisprudência defensiva, consistente na
criação de entraves e pretextos para impedir a chegada e o conhecimento dos
recursos que lhe são dirigidos”. Site do STJ, 9.6.12.
“Entraves e
pretextos”. Só por aí se percebe que o problema é sério. Essa nova cultura
oficial de entraves e pretextos nos recursos vê-se recheada de uma para lá de discutida
legitimidade. Isso para dizer o mínimo. A coisa parece estar difundida tanto em
cabeças judicantes, como em cabeças assistentes, secretariais etc. Busca-se legalizar
a ilegalidade dos tais entraves e pretextos por meio, apenas, do poder oficial.
Em épocas de “o governo pode
até declarar guerra desde que os consumidores estejam felizes”, na crítica do
sociólogo Zygmunt Bauman (Vida líquida),
um verdadeiro
o-Estado-pode-tudo, o discurso oficial é pouquíssimo contestado.
Admissibilidade de recursos é matéria de
ordem pública, não pode ficar como biruta ao vento da vontade de quem lhe
examina e afere. Na visão inversa, de manejo processual de recursos, a
sociedade não deveria ficar exposta a um “te peguei” processual no sentido de
que se os advogados esquecerem uma vírgula terão os seus recursos judiciais
energicamente inadmitidos. Isso não é socialmente saudável, mas também não é nada
legal.
Ninguém
esquece que se vive a adoração às ações judiciais. Com o fim da gentileza, da
fraternidade, da amizade humilde em que problemas poderiam ser resolvidos fraternalmente
e com carinho social, todo mundo parece querer acionar todo mundo na justiça. O
Estado, que no momento da Constituição de 1988, chegou a “estimular” essa onda
tribunalesca, como um sinal de cidadania avançada, percebeu que entrou pelo
cano. Vê-se hoje refém de uma avalanche de ações e recursos.
No informativo do escritório Wambier & Arruda
Alvim Wambier, IX:17:julho/2012, por exemplo, sobre a jurisprudência defensiva,
leem-se expressões como “verdadeiras armadilhas” e “séria dúvida sobre a
legalidade e legitimidade dessa prática como meio de atenuação da sobrecarga de
trabalho dos tribunais”. Perfeito.
Apenas dois exemplos grotescos. O STJ não conheceu recursos especiais, ao fundamento de
que “as guias” de recolhimento das custas estavam preenchidas sem o número “de
origem” do processo (ED em Resp 850.355-RJ), ou porque preenchidas “a caneta”
(AI 1.155.821-MG). Parece piada, mas não é.
Nesta
guerra absurda que passou a ser a admissibilidade de recursos, com funcionários
fiscais da admissibilidade como inimigos – que tristeza –, todo cuidado é
pouco. Nas petições de recursos, então, passa a ser recomendável um tópico
inicial, didático e bem formalista, com a demonstração da possível
admissibilidade. É o vulgar “esfregar na cara”, no sentido de que o recurso não
apresenta defeitos e esdruxularias admissionais. Depois, rezar e torcer para
ser sorteado não será pedir muito.
No recurso extraordinário,
por exemplo, além dos requisitos comuns que podem estar “demonstrados” um a um
na petição, como cabimento; legitimação; interesse; tempestividade;
regularidade formal; inexistência de fato impeditivo ou extintivo; preparo e
porte-retorno; prequestionamento (cuidado com essa neurose processual);
repercussão geral; ser decisão de última instância, há uma lista de outros argumentos
prévios. Tudo isso pode “inibir” o furor inadmissional. Tudo em síntese na 1ª
página do recurso.
Ainda, relativamente
às súmulas pode conter: não é reexame de prova (279); não é ofensa a direito
local (280); a situação está “ventilada” (282); foram atacados “todos” os
fundamentos (283); está delineada a “exata compreensão da controvérsia” (284);
não se trata de arguição de inconstitucionalidade, ou se se tratar, é
“razoável” (285); o plenário do STF não se firmou como a decisão recorrida
(286); a matéria vê-se prequestionada (356); o pagamento anexo é “preparo do
recurso” e a guia de pagamento está totalmente identificada. Mais um pouco de
reza e torcida ajudarão.
Recurso é direito
fundamental consagrado na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 8o,
h; promulgada no Brasil pelo Decreto 678/92. O problema é que com o
remendo inventado conhecido como jurisprudência defensiva, concebida como
“entraves e pretextos” visando à inadmissão de recursos, senta-se, há que se
admitir, francamente, no colo da ilegalidade. E o Judiciário não pode aceitar
esse modo.
Não se trata de um
subjetivismo ou apego ao direito das partes, em recorrer, com um “danem-se os
tribunais se eles ficarem [mais] entupidos”. A jurisprudência defensiva está
sendo utilizada de forma mutiladora. Direitos graves, sensíveis, de pessoas de
bem estão sendo solapados por um “te peguei” processual, tudo para se festejar menos
um recurso em trâmite.
A mesma sociedade
que reclama, muito genericamente, da Justiça, no sentido de achar que o sistema
recursal é neurótico, que advogados recorrem indefinidamente, está sendo
prejudicada. Os filtros constitucionais, legais ou de súmulas, como repercussão
geral, prequestionamento etc., não ofendem ao sistema de recursos. É a regra do
jogo. Mas antipatias, implicâncias e pretextos para não se admitir um recurso
em que até ilegalidades ou inconstitucionalidades veem-se aparentes, é ofensa à
Constituição e à cidadania. Estão sobrando resmungos em fila de supermercado e
faltando reclamações institucionais e sérias. Jean Menezes de Aguiar.