O grande filósofo político Norberto Bobbio
“Sou da esquerda e acho que ela é a salvação do mundo”, Darcy Ribeiro (Confissões). Pois é, Darcy era personalista, denso, odiado, amado. Mas inequívoco. Afora militares, parece que somente as pessoas da esquerda declaram explicitamente sua posição. No Brasil, o resto é “centro”. Na recente obra do filósofo Alain Touraine (Após a crise, 2011, p. 13) vê-se que a situação chegou "ao ponto dos eleitores não saberem mais diferenciar a esquerda da direita." A que ignorância se chegou. Uma política global cínica e nunca verdadeira, em tempos de consumo e publicidade, contribuiu para esta vesguice social. Como se não bastasse, alguns assumem um ar blasé para negar a díade direita-esquerda. Virou moda negá-la. Precisamos de mais figuras como Noam Chomsky: “A esquerda está do lado dos pobres e a direita do lado dos ricos” (Il club dei ricchi). Ou será que Chomsky é “louco”?
Se para os que negam, a diferença é tão “risível”, por que tantos sábios continuam a usá-la? Obras atuais como as de Habermas (O discurso filosófico da modernidade); Hobsbawm (A era dos extremos); Michael Denning (A cultura na era dos três mundos); Elio Gaspari (A ditadura envergonhada) usam-na. Com maestria, claro. Mas a obra máxima no tema é a de Norberto Bobbio (Direita e esquerda). Este autor, na 2ª edição, respondeu a todas as críticas, de outros geniais com absoluta eficiência e gentileza. O resultado é que a distinção se sustenta e é natural.
Quem faz cara de fastio para a diferença pode demonstrar ignorância ou cinismo. Estudar a sério sempre deu trabalho e demandou anos, além do que saiu da moda na sociedade do Google. Já o cinismo, na questão, tenta abafar ou misturar conceitos inconfundíveis. Alexandre Dumas em frase histórica dizia preferir “os canalhas aos imbecis, pelo menos os canalhas dormem”. No caso aí, o cínico será um parceiro para o debate bem melhor do que o tonto, que apenas crê.
O problema entre direita-esquerda não é de rótulo, mas de valores subjacentes. Em épocas dum comunismo explícito, real ou teórico, como em outras épocas de ditaduras militares, todas conservadoras e reacionárias, os conceitos direita-esquerda eram fáceis. Qualquer um do povo conseguia entender rapidamente a distinção. Não se precisava de maturidade política ou de conhecimento aprofundado para se perceber os lados. As extremidades eram discutidas, ou brigadas, no almoço de domingo. Os marcos viam-se distantes uns dos outros.
Nas ditaduras, de esquerda ou de direita, a sobrevivência diz respeito à própria vida física em si. É o manter-se vivo ou morrer. Já na sociedade lânguida do consumo, a sobrevivência se desloca para a obtenção de bens, usualmente conseguidos pelo trabalho. Ou melhor, capital, coisa totalmente diferente. György Lukács (Prolegômenos para um ontologia do ser social), um mestre, ensina que o “fato ontológico fundante do ser social” é o trabalho. Tanto a falta do trabalho vitima o agente como, nesta sociedade atual e louca, impossibilitará a felicidade do consumo. Este “viva ao consumo” é apontado por Zygmunt Bauman (Vida líquida): o governo pode até declarar guerra, “desde que os consumidores estejam felizes”.
Ora, se com o consumo, a sociedade ficou mais simplista – tudo se resume a ele –, por outro lado os marcos e valores que subjazem à direita-esquerda ficaram mais próximos, mais tênues, e, mais difíceis. Mas jamais isso quis dizer que os marcos tenham desaparecido. Ao contrário. Passaram a exigir uma leitura como a de Edgar Morin na obra Introdução ao pensamento complexo, em que fenômenos díspares se entrelaçam e se explicam. Aí, os interesseiros em que a díade acabe, para dizer que todos estão no mesmo saco, inoculam o cinismo de negá-la. FHC, sabiamente, no exterior, acusou que no Brasil todo mundo era de centro. Falou como crítica, revelando uma hipocrisia que tenta omitir marcos e pautas.
Uma qualificadora ligada aos conceitos direita-esquerda passou a ser necessária para se compreendê-los: esquerda ou direita “possíveis”. Já um fator de manejo cognitivo também: “maturidade”. Há que se ter maturidade para se aceitar que atualmente, direita e esquerda continuam a existir, mas em balizas do “possível”, seja uma quanto outra. Como maturidade política, conhecimento metódico e complexo pode não ser algo que se encontre no varejo, o entendimento dos conceitos com essas necessidades fica muito mais difícil.
Mas exemplos fáceis há. Quando se fala que FHC [sempre] foi da esquerda, muitos passaram a duvidar. Basta ver quem foi seu vice, para contraponto. Depois Lula e muitos passaram a dizer, bobamente, que tinha se “tornado” da direita. De novo, veja o vice e olhar do povo para ele. “Ser” da direita ou da esquerda não quer dizer ter que se pensar como Nini (general Nilton Cruz) ou como Leon Trotsky. Isso não existe mais e querer balizar direita-esquerda por esses moldes extremistas ou é ignorância ou cinismo. Exatamente aí entram os conceitos de direita e esquerda possíveis.
No Direito há movimentos saídos da esquerda, fáceis de serem vistos. Bobbio anota que os direitos fundamentais foram uma pauta da esquerda (op. cit). Também, Constituição “cidadã”; inversão do ônus da prova; responsabilidade objetiva; desconsideração da personalidade jurídica; direito do consumidor; jornada de trabalho reduzida; modelos compensatórios. Tudo isso foram pautas da esquerda, que, depois, pouco importam, foram incorporadas e fim. O importante é terem sido incorporadas. Só não se pode dizer que “é tudo a mesma coisa”.
Millôr Fernandes deixou a reclamação: “não gosto da direita porque ela é da direita e não gosto da esquerda porque ela é da direita.” Existem os lados, as pautas e as ideologias, em suas origens, visíveis e estudáveis. Como direitistas, conservadores, ortodoxos e reacionários não têm muito orgulho de gritar que são da direita, quando tentam dizer que a díade não existe mais, soa, é claro, como puro cinismo. É de desconfiar completamente. Isso não quer dizer que a esquerda tenha se mantido com aquele purismo poético de outrora e não pratique suas infinitas mazelas, desastres e assaltos aos cofres públicos, além de demonstração de incompetência. Nada como os últimos 10 anos no Brasil para prová-lo. Mesmo assim, continuam sendo coisas totalmente diferentes. Jean Menezes de Aguiar