Salvem as árvores
As conclusões da Associação Internacional de Direito Processual sobre o instituto do “abuso” no direito processual continuam atuais e importantes nessa época de reforma do CPC. O abuso talvez seja um dos mais danosos entraves a uma correta gestão do processo. O problema é que toda vez que se discutem institutos valorativos, como a “abuso”, legisladores e juristas têm dificuldades com a precisão, o alcance e a positivação deles. As soluções e as fronteiras conceituais nunca são exatas. O manejo da axiologia (conceito abuso-não abuso) recepcionada pela lógica excludente de o que possa ser razoável (o que não é abuso) sempre foi das junções mais difíceis no direito. Em se tratando de boa-fé, por exemplo, será má-fé o que não for boa-fé, mas o problema é resolver a circularidade de se saber, então, o que não é boa-fé.
À axiologia do conceito de abuso, que exclui o não abuso, mas para que possa excluir precisa antes se conceituar como o que é abuso – será então um conceito excludente de o que não é abuso –, varia até se chegar ao conceito em si. Essa variância é justamente a axiologia pré-conceitual. Nela há que se identificar o que é abuso e o que não é para se concluir, por positividade, o conceito de abuso.
Também, os sistemas jurídicos costumam ser positivos, no sentido de arrolar condutas que compõem o abuso, em lista exemplificativa ou exaustiva, e isso independe do fato de ser direito material ou processual. No direito material, por exemplo, a antiga lei do Cade, 8.884, no art. 21, compunha lista exemplificativa positiva – arrolava abusos, infrações –. Manteve o mesmo positivo cenário na nova lei 12.529, no art. 36. Já o Código de Processo Civil, no art. 17, apresenta lista principiologicamente exemplificativa acerca da litigância de má-fé, se se considerar que será má-fé o que não é boa-fé, podendo-se a boa-fé ser manejada pela presunção clássica de licitude aliada à razoabilidade da demonstração do agente no tocante à conduta no máximo “equivocável”, mas nunca desejosamente prejudicial. O dolo será uma demanda intransponível na assinação da má-fé, sem ele não se consegue entrar no conceito de abuso.
O direito espanhol apresenta um conjunto de garantias constitucionais de conteúdo processual (art. 24, I CE) com 2 parâmetros (Francisco Ramos Méndez, Abuso de derecho em el processo?):
I) Uno negativo, la prohibición de un resultado de indefensión.
II) Otro positivo, la eficacia del juicio.
Está na LOPJ, art. 11, a norma que consubstancia a regra geral da matéria. A preocupação que a Constituição espanhola quer garantir é um nível de eficácia ao mesmo tempo negativo e positivo, trabalhando em termos genéricos, mas efetivados.
Já o direito português sempre mais minucioso regula a situação no CPC, arts. 456 (definindo má-fé processual), 457 (regulando o conteúdo da indenização), 665 (conceituando o uso anormal do processo) e 778 (regulando o mecanismo de oposição de 3º em relação a litígios simulados).
Por seu turno, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sua Opinião Consultiva no 9/87 interpretou o alcance do art. 8º, que estabelece que
“toda persona tiene derecho a ser oída, con las debidas garantías y dentro de un plazo razonable, por un juez o tribunal competente, independiente e imparcial, establecido con anterioridad a la ley, en la sustanciación y de cualquier acusación penal formulada contra ella, o para la determinación de sus derechos y obligaciones de orden civil, laboral, fiscal o cualquier otro carácter.”
Daí estabeleceu o conceito de devido processo legal, e dessas bases saíram ideias acordadas para o Código Procesal Civil Modelo para Iberoamérica, cujo predomínio é a oralidade.
Em se tratando de boa-fé e probidade no processo, para os direitos da Argentina, Brasil, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai têm-se a raiz comum no direito continental europeu codificado. Todo esse labor mostra a tendência que foi a unificação dos conceitos no sentido de que a garantia do devido processo legal é reconhecida como um dos direitos essenciais dos Estados Democráticos e também concebida como um direito humano fundamental.
Movimento interessante fez a Argentina após a reforma do Código Civil de 1968, no sentido de excluir o exercício do abuso do direito, ao considerar o princípio assentado no art. 1.071 que rege que o exercício regular de um direito próprio ou o cumprimento de uma obrigação legal não pode constituir como ilícito nenhum ato, ao mesmo passo que a lei não ampara o exercício abusivo dos direitos. Ficou consagrada a proibição do abuso de direito de forma a que o legislador argentino reconheceu as soluções da doutrina e da jurisprudência.
No Brasil, com o Código de 1939 viram-se 10 situações catalogadas consubstanciando abuso: dolo, temeridade, fraude, emulação, capricho, erro grosseiro, violência, protelação, falta ao dever de dizer a verdade, e anormal uso do poder de disposição do processo. O CPC de 73 não trabalhou com a invocação específica de vícios, dando maior importância ao dever de veracidade e dever de probidade. O autor mineiro Humberto Theodoro Júnior registra: “nos longos anos de vigência do Código não se tem notícia alguma de juiz que tenha sido condenado a indenizar litigante prejudicado por improbidade do condutor do processo”. São raras as condenações, mas elas há.
Processualistas seniores parecem estar céticos quanto ao movimento reformista do CPC, no que tange à celerização do procedimento, quando cotejada a situação estritamente processual a um cenário sociojurídico brasileiro carcomido e viciado, em que mazelas se sucedem a cada semana no Estado e na sociedade e o processo e o Judiciário, enquanto instrumento legais, se mostram bastante incapazes para resolver questões primárias. Jean Menezes de Aguiar