"A força da música vagabunda é extraordinária."Noël Coward
Partindo-se de um método de comparação ou contraposição, se a empresa aérea TAM em seus aviões anuncia aos passageiros: “Rádio TAM, aqui você ouve MPB da melhor qualidade”, é sinal que existe uma MPB da pior qualidade, ok? É óbvio que há o melhor e há o pior mesmo. Porém, antes de qualquer um hastear a bandeira de que isso “é gosto”, precisamos enfrentar essa “defesa”.
Com a sociedade do chatissimamente correto e a “proibição” de conceitos como “brega”, a música de péssima qualidade ganhou proteção quase que sagrada, no sentido de que passou a ser incorreto fazer crítica a um artista ou a um gênero de música. Daí a Odair José e Reginaldo Rossi virarem “cults” ou merecerem o carimbo do “in” foi um passo rápido. E como arrastam, sim, milhões de fãs, as portas da historicamente inatingível Rede Globo se abre para eles, precisamente pelos pontos na audiência que a Globo pós-qualidade e pós-Roberto Marinho vai se transformar.
Nessa nova esteira da música livre de qualidade aparecerão Ivete-Coxas-Sangalo, Banda Calyypso e sua antropologicamente interessante Joelma (ela deve ser muito interessante e legal numa conversa de bar), tão maravilhosamente imitada pelo comediante Chaolin, os sertanejos, caipiras, capiaus e roceiros chiques, escolares e universitários da música primária e simples, com seus acordes todos de 3 notas, harmonia totalmente intuitiva, refrães clichelizados e letras fáceis. Como muita gente acrítica confunde “qualidade musical” com “fama”, acha que uma praça de tourada, rodeio ou corrida de cavalo lotada em Barretos gritando para uma dupla cowboy nordestina ou do interiourrr de São Paulo cantando “eu ti amuuuu”, é qualidade musical. Não é e nunca foi.
Qualquer um pode, perfeitamente, “gostar” do simples, do simplório, do primário, do fácil, do comum, do clichelizado, do repetitivo, daquele que o músico profissional que nunca tocou a música e nem a conhece chega num palco e consegue acompanhar de ouvido pela primeira vez sem errar. Essa é a música fácil e primária. Qualquer um pode gostar desse gênero simples e intuitivo de música. Mas na história da música essa música nunca foi considerada de boa qualidade. Se uma parcela imensa de um povo gosta, não há qualquer problema. Gostar é um direito legítimo, ligado ao prazer. Só deve[ria], essa parcela de povo, saber que isso nunca foi considerada música de boa qualidade.
Aí o filósofo da arte me perguntará: mas se a música é para entretenimento e deleite, qual é o erro de se gostar da música “simples”? E teremos que repetir mil vezes: nenhum. Gosto não se discute. Pode-se lamentar, mas não se discute. O que “não pode” é se querer dizer que essa música simples, primária e que um compositor consegue fazer meia dúzia delas em 2 horas, seja música de boa qualidade. É verdade. Essas músicas de duplas sertanejas, por exemplo, um compositor profissional faz 10 por dia, e não adianta ficar magoado, essa é a verdade musical. Quem acha que é exagero, informe-se. São conhecidas histórias de compositores que entram em estúdio para gravar e por alguma razão o produtor veta uma ou outra música. O cara pede 1 hora, se tranca numa sala e volta com mais 2 ou 3 músicas prontas, letra e música. Qualquer músico profissional já ouviu essas histórias; aos montes.
Talvez a Globo agora, e só agora que está despencando em audiência, está quebra não quebra, por ter querido imitar as concorrentes no horror da desqualidade, esteja refletindo na sua opção. Ana-Maria-Papagaio-Pentelho-Braga está sendo suavemente substituída pela esposa do Bonner; Faustão-Chato-pra-caralho-Silva está perdendo audiência pra Gugu-papai-Silvio-Liberato e por aí vai. A Globo se mantinha olímpica com a qualidade musical e artística, mas aí percebeu que audiência é cega, não mede qualidade, só número. Qualquer sociólogo percebeu essa curva. E o Brasil pós-qualidade apertou o botão do foda-se para a música boa. Foi Roberto Marinho morrer para destruírem o que havia de bom na velha Globo, saiu Daniel, Boni etc.
Essa é apenas uma das explicações para essa invasão sertaneja e lésbica de baixa qualidade na MPB. E não adianta se eriçar com a palavra lésbica dizendo que seria “preconceito” meu, essa mesmice argumentacional dos provincianos. A impressão é que muita cantora só conseguiu ser cantora porque se deixou comer pela madrinha certa, já que de cantora é nada. Mas a MPB está cheia delas assim, as "chatolinas" (entendeu ou precisa desenhar?).
Crítico de jornal tem gosto, músico tem olho clínico, são coisas inconfundíveis. Crítico gosta ou desgosta, músico analisa a construção harmônica, as inversões dos acordes, os caminhos melódicos, as quiálteras, os ritmos compostos. É uma análise diferente de quem apenas gosta do produto final. Isso não dá ao músico uma avaliação "melhor", mas apenas diferente. Já se disse que músico não ouve a música, presta atenção no que o baixista está fazendo, no que o baterista está fazendo e por aí vai. É o ouvir instrumento por intrumento, como também o itinerário melódico e harmônico, se há simplicidade ou complexidade. Músico sempre respeitou mais a complexidade.
Começar de novo, de Ivan Lins e Vitor Martins, por exemplo, que na minha edição do The new real book, de 1988, está na página 159, como The Island ainda apresenta dificuldades pra mim que toco a música há 20 anos e que encanta surpreendemente qualquer um, de Toots Thielemans (no melhor improviso que já vi, no CD em sua homenagem) a Quincy Jones, e já vi muito músico profissional de gabarito “jogar a toalha” para improvisar: pedir a grade de cifra para acompanhar porque a música é, sim, extremamente difícil de tocar em sua estruturação de quintas. Desafinado, de Tom Jobim e Newton Mendonça, é outra música assim. A segunda parte de Garota de Ipanema, outro caso complicado. Já vi na noite – quando havia casas noturnas com conjuntos grandes – músicos que tocavam Garota de Ipanema sempre em Fá (era o meu caso quando trabalhava na noite, em todos os anos que trabalhei assim). Quando aparecia alguém que pedia a música em outro tom, às vezes dava o maior problema. Os músicos de harmonia perguntavam logo: não pode ser no “tom comum”? Como se houvesse um tom comum, querendo dizer tom original. Além de essas músicas serem mundialmente respeitadas pela beleza, são por qualquer músico, japonês, francês, americano, brasileiro etc.
Isso tudo para dizer que há, sim, músicas superiores e músicas inferiores - nivelar tudo é canalhice. E essa organização mental precisa ser feita, ainda que possa não servir para muita coisa, porque gosto não se discute.
Certamente é por isso que Caetano Veloso respondeu como respondeu ao entrevistador da revista Época, 12.12.2011, ao ser indagado que João Gilberto seria "esquisito": "Esquisito quem, cara pálida? As gerações que cultuam vagabundos que fazem questão de ostentar limitações musicais vão achar alguém esquisito? João Gilberto é o mais cool dos colls".
Limitações musicais. Só preciso desssa passagem de Caetano para dormir feliz e saber que há os com e os sem limitações musicais. Essa praga social do politicamente correto que não se pode mais dizer que uma música ou um cantor são uns merdas, está insuportável.
Por isso, vivam os deuses Lulu, Tim, Fagner, Gal, Betânia, Gil, Ivan, Djavan, João Gilberto, João Bosco, Elis, Vitor Martins, Chico, Aldir, Beto Guedes, Cláudio Zoli, Nana, Edu, Emílio, Roberto e Erasmo, Fátima Guedes, Francis, Guilherme Arantes, Donato, Milton, Ney, Raul, Taiguara, Rita, Roupa, Rosa Passos, Tania Maria, Eliane Elias, Vinícius e Zé Ramalho. Esses caras constroem poesias, não imitam os outros; não fazem força para ser, são como são. E mesmo assim não vemos eles nos programas de domingo na TV. A coisa está na direção do “para o mundo que eu quero descer”. Abraços e beijos pra esses deuses e seus músicos que tocam muito porque com esses aí precisa saber tocar de verdade, não há enganação. Jean Menezes de Aguiar.