Ciência, mito, antropologia, crédulos e saco cheio de gente chata.
Quem não lida com ciência acha que ela é sinônimo de “verdade absoluta”. Um saco isso. Já ouvi muito isso de pessoas boas e verdadeiras, e que creem nessa coisa como se fosse um dogma. A imprensa “vende” essa ideia, por meio da mídia e da publicidade, e também vende produtos, claro. Ouve-se da boca de pessoas inocentes na TV comercial o horror do “está provado cientificamente”. Daí, todo mundo acha que essa tralha de prova científica é sinônimo de verdade absoluta. Fazer o quê? Este é um grande equívoco cometido por muitos. Para a filosofia da ciência essa equação, verdade absoluta, é uma piada gargalhática. Na área da metodologia científica aprendemos que há 4 níveis de conhecimento: o vulgar ou empírico; o científico; o filosófico; e o teológico. Isto está em Cervo, Bervian & Silva, na ótima obra Metodologia científica (o livro que adoto). E também aprendemos que o único conhecimento que produz verdades absolutas é o conhecimento teológico. Isso mesmo, e não adianta se espantar. Verdade absoluta é coisa de conhecimento teológico, o dado “revelado”. Mas não vou entrar muito nisso. O mito e o milagre são estudados tanto na metodologia quanto na antropologia, profundamente. Mas o fato de eles serem “estudados” não quer dizer que cientistas e filósofos o “adotem” como um rumo pessoal. Jamais. A ciência não tem qualquer preconceito em “estudar” o mito, o milagre ou o clásper (pênis) do tubarão. Já passar a “acreditar” nessas estruturas é outra coisa. Quanto mais se lida com ciência mais se fica “científico” e menos propenso a “acreditar” em conhecimentos “fáceis”, atalhos e simplificações da mente humana (aqueles conhecimentos que não demandam formação, livros, horas, meses, anos de estudo, nada, apenas alguém “falando” e alguém “crendo”). Nem se precisa entrar numa avaliação do mito, da fé, das manifestações culturais. Eles são validados e reconhecidos pela antropologia enquanto traços culturais de uma gente, de um povo, de uma sociedade. São reconhecidos assim, deste modo, e assim devem ficar organizados e classificados, no lugar deles.
O grande antropólogo Clifford Geertz (Nova luz sobre a antropologia, p. 111 e ss.), quando tenta apartar a deliciosa briga entre historiadores e antropólogos, informa com elegância e isenção que os historiadores se dedicam a movimentos grandiosos que mudaram o mundo – a Ascensão do Capitalismo, a Queda de Roma –, já os antropólogos se dedicam a pequenas e bem delimitadas comunidades – o Mundo Tewa (qual?), o Povo de Alor (quem?). As perguntas irônicas entre parênteses, qual e quem, são do próprio Geertz. Mas o fato é que a identificação das culturas, ainda que delimitadamente circunscritas e “extravagantes” se nos é muito importante. Talvez tiremos delas, para uma metodologia comparatória valiosa um “excesso” de mitos, crenças, crendices próprios de povos rudimentares e quando aproximemos o mesmo “sistema” de mitos, crenças e crendices de povos “evoluídos” – e eles existem – consigamos ver que “mesmo” os povos evoluídos têm seus padrões de mitos, crenças e crendices. Daí tiram-se duas “conclusões” (atenção às aspas!): Ou os povos “atrasados” que utilizavam seus mitos não eram atrasados porque os povos “evoluídos” também utilizam mitos, e então a utilização de mitos não será uma “sistemática” atrasada; ou os povos “modernos” quando utilizam mitos mostram-se atrasados [nisso] porque a sistemática de mitos é [seria] própria de povos atrasados. Tudo bem que esse método balanceado possa ter alguma “lógica”, mas tem em mente a visão distendida de um resultado que beira ao cartesianismo, ainda que – advirta-se! – no caso não de todo imprestável. Mitos, crenças e crendices sempre existiram e fizeram parte das culturas e das gentes. Não se bate contra isso, o mito é um traço cultural dos povos. O problema é uma investigação que busque esgarçá-lo num confronto “com a ciência”. E aí ele tem que “apanhar”, não há como ele não apanhar. O mito é atávico a muitos, reconheça-se, mas também é um atalho (merdosial e espúrio) em termos de episteme cognoscitiva. A ciência trabalha com repetibilidade, experimentabilidade e demonstrabilidade. Não se trata de “crer”, por exemplo, que Peróxido de Hidrogênio seja composto como H2O2, cuja solução aquosa é conhecida por água oxigenada. Não há mitos e crenças aí, nem “teses”. Há uma redução científica que “descobre” que a fórmula x é a substância y em qualquer lugar e sob qualquer condição (não vou abordar aqui como a filosofia da ciência enxerga a “redução”, isso é outra coisa). Não há como se “contestar” isso. Quando se trabalha com este tipo de estrutura está-se demonstrando, repetindo e experimentando. Cem alunos em um laboratório têm, obrigatoriamente, que concluir a mesma coisa, o mesmo resultado, por meio da mesma equação. Sabemos que a ciência evolui no tempo (muda conceitos), mas isso também é outra coisa. Passei alguns anos enfiado em laboratório de química, quando estudante, recordo que a turma inteira, no início, ficava perguntando ao professor como o ácido podia “fazer fumaça”; como era possível dar um nó numa pipeta (tubinho de vidro) aquecida no bico de bunsen (chama), aquilo tudo parecia mágica, mas as explicações científicas calmas e exatas existiam, e nos maravilhavam. Fiquei tão empolgado que montei um laboratório de verdade em casa, pesquisando e misturando as coisas mais loucas (que perigo).
Mas quando se fala em “redução”, desafia-se a ira de certos filósofos da ciência (eles a chamarão de fisicalismo), principalmente a “nova” filosofia da ciência que vem pretendendo alargar conceitos e princípios científicos como se tudo fosse uma zona, um vale tudo, por isso que se diz que o pós-modernismo é o irracional da ciência, uma construção intragável para cientistas. Esses relativistas totalitários vão dizer que por séculos verdades se mantiveram estáveis e depois caíram; é verdade. Sabemos disso. Mas não podemos tornar “tudo” infinitamente relativizável, não podemos nulificar o todo, dizer que não há mais nenhum núcleo duro ou lógico na ciência. A mecânica não se alterou com a física quântica. A evolução de Darwin deixou de ser uma teoria e se tornou um fato para todos os biólogos, segundo Ernst Mayr e ele pode falar por todos. Assim, há princípios que não oscilaram, não experimentaram viragens ou câmbios conceituais.
O inteligente filósofo Luiz Felipe Pondé, na boa obra Contra um mundo melhor, que declara gastar seu tempo para humilhar as almas científicas, certamente diria que essa ode à ciência é das maiores boçalidades já vistas. Mas ele talvez se situe numa quadra de filósofos “desarrumadores” genéricos da ciência. Noutro plano, mundial, há a figura mítica de Paul Feyerabend com sua densa obra Adeus à razão. Mas não só ele, há inúmeros “anarquistas” (gosto muito desse termo, não tenho problema psicológico nenhum com ele, e o emprego aqui de forma dócil), tanto que SoKal e Bricmont na obra Imposturas intelectuais deitaram e rolaram, dando nome a alguns bois, filósofos da ciência que vilipendiaram a própria ciência com terminologia confusa e demente. Mas essa conversa interna entre filosofia e ciência é pra outra hora.
Quero, ou queria (...) discutir as pessoas que creem [apenas!] e consideram a sua crença como “conhecimento” a ponto de opor suas crenças ao conhecimento científico. Este é o ponto. As pessoas, não o mito ou a ciência. Vou verter uma baba nojenta e asquerosa a partir daqui em defesa da ciência. Como meus textos não valem nada mesmo e isso tudo é mera brincadeirinha de Facebox, qualquer um que chegou até aqui pode parar de ler e me mandar pro inferno (soube que lá tem mulher bonita & gostosa; alvissareiro!). Aprendemos na antropologia que as religiões são manifestações válidas e “legais” das sociedades. Ok, tudo bem. Só não podemos confundir os vendedores e pregadores desses “conhecimentos” com quem simplesmente estuda, seja um oceanógrafo, um paleoantropólogo, um astronauta, um biólogo, um musicista (este ainda precisa de dom que é um troço meio inexplicável- deístico? Ou biológico?). Só precisamos combinar: há conhecimento, há informação, há notícia, há fofoca e há pseudo-ciência, como astrologia, por exemplo. Só precisamos organizar em que plano vamos conversar. Oceanógrafos produzem conhecimento, lento, acumulado. O tempo de vida máximo ideal do tubarão branco (Carcharodon carcharias) fora da água para colocação de rastreador, recebendo água mecanicamente pela boca para que não morra é de 20 minutos (basta ver no canal Animal Planet). Conseguiu-se reduzir para 15. Outro dia vi na mesma emissora de TV que a tentativa para redução para 10 minutos falhou. Essas cronometrizações são a maravilha chamada “fazer ciência”. Calculam-se quantos homens são necessários, quais as ferramentas etc. Isso é cumulativo. E é inscrito, publicado e “até” divulgado pela TV. Ninguém ali crê em porra nenhuma, a não ser nas medidas precisas e calculadas que precisam ter e operar para que o grande branco não morra quando tirado da água. Aí me aparece um sujeito qualquer, com um curso de correspondência em márquetíngue religioso, com um bíblia na TV faturando trilhões de reais. Fodam-se os seus trilhões, se eu estou discutindo conhecimento não é e nunca poderá ser aquilo, aquele pastelão comercial e descarado. O mundo é muito grande e tem espaço pra muita gente, só não venha querer dizer que aquilo tem como explicar a idade da Terra, o formato dela, o surgimento da vida, a evolução humana, e o sistema galáctico. Todo mundo é livre para crer em alguma coisa, Deus, Buda, Alá, Maomé, Thor, Jesus, Oxossi, Iemanjá etc. E digo isso com respeito, sem qualquer problema psicológico com os deuses e santos. O grande problema é terreno – é o homem que “apenas” crê, querer desfazer o conhecimento científico de um biólogo, de um químico quando falam da vida. Talvez seja por isso que Carl Sagan e Isaac Asimov ficaram cada vez mais severos (emputecidos mesmo) em suas divulgações científicas. Asimov (Antologias) chega a dizer – você acha que estou fazendo muita propaganda da ciência, então compare os países que produzem ciência com os que ficam de joelho gemendo em adoração oficial a um deus. Sei que muitos detestam comparação, odeiam, querem que tudo seja possível em nome da “cultura”. Tudo bem. Mas há se retomar: pode haver toda “cultura” do mundo, só deixe a ciência em paz. Isso está tão conturbado que em aulas do inocente Direito, área que se principiologiza cientificamente, os alunos não querem aceitar qualquer dado científico. São expostos princípios lógicos no quadro e a lógica “não convence” mais. É assustador. Assim, quem gostar de um bom mito, duende, papai Noel, coelhinho da páscoa, tudo bem. Que seja feliz com sua visão de mundo. Só não encha o saco querendo doutrinar quem lida com ciência, dura, exata, básica, social, humana, dúctil, axiomatizada, cliometricizada etc. Vamos para a corruptela do gosto não se discute. No máximo se pode lamentar. O meu gosto, por exemplo, deve ser péssimo e fedorento para muita gente que odeia a ciência e a filosofia da ciência. Mas é, “é gosto.” Jean Menezes de Aguiar
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