Classe média. É média, não pode ser imensa...
Artigo publicado nos jornais O DIA SP e O ANÁPOLIS (GO) 8.11.12
Recebi da arquiteta e cenógrafa mineira Giselle Morais, convertida a paulistana há anos um e-mail com o vídeo da filósofa paulista Marilena Chaui em memorável encontro na USP intitulado Ascensão Conservadora. Um presentão. Está no Youtube. Chaui está ótima, por vezes cínica, leve e tempestuosa. Certeira contra essa classe média, como ela mesmo ensina: conservadora e agressiva.
Conta a professora titular da USP que não consegue juntar a comportada civilidade na vida doméstica dessa classe média de São Paulo com o grau de brutalidade e autoritarismo na vida pública. Cita um amigo que diz que a classe média paulistana é um “mistério”: convida amigos e recebe bem. Mas basta 1) subir num carro; 2) entrar numa fila; ou 3) estar em algum espaço compartilhado que se transforma em “bestas selvagens”. Exata a leitura. A pensadora conta um episódio havido com ela em que o sujeito estaciona o veículo ocupando três vagas à porta de um caixa eletrônico e, questionado, responde: - você acha que vou estacionar meu Mercedes em qualquer lugar? De aí há um bate-boca, claro “conduzido” pela intelectual, em que a estupidez do só-riquinho vê-se sua purulência. Chaui remata: “Igual a São Paulo não há. É uma coisa de uma violência extrema”.
Esse gancho vindo de uma das deusas da filosofia brasileira bem pode se juntar ao recém falecido Eric Hobsbawn (A era dos extremos, p. 24), quando registra: “Essa sociedade, formada por um conjunto de indivíduos egocentrados sem outra conexão entre si, em busca apenas da própria satisfação (o lucro, o prazer ou seja lá o que for) consubstancia uma característica sempre implícita na teoria capitalista.” Que preocupante a sociedade atual merecer, com toda razão, essas leituras de estupidez, violência e egoísmo.
Daí se tiram traços críticos em educação, ética, sociedade, consumismo, conservadorismo, falta de sabedoria etc. Também se tiram comparações ou projeções. Não é de todo errado dizer que de São Paulo são “exportados” visões e valores para algumas “províncias” – cidades pequenas, ou grandes, do país. Sempre foi assim, quem tem “poder” é imitado. Mas em relação a imitações, emendas costumam sair piores que sonetos.
O Rio de Janeiro já “foi” a capital cultural do país, quando cultura não representava “indústria” cultural. Naquele Rio, de tijolo maciço e pedras, há a Biblioteca Nacional, a Academia Brasileira de Letras, o Arquivo Nacional, o Museu Nacional, o Museu Nacional de Belas Artes, o Theatro Municipal, além de ter sido a capital da República. Mas aí um consumismo pré-fabricado sentenciou que capital cultural é sinônimo de dinheiro para “produção” de eventos, casas de shows etc. Mesmo que de gosto duvidoso. Bem, na questão dinheiro, o Rio é “falido” se comparado à São Paulo das nouveaux riches Ferraris e mais carros blindados do mundo. O problema é que essa dimensão de cultura estuprada pelo vil metal quase que fez o próprio conceito de cultura “mudar”. Passar a ser uma produção industrializada e não mais “um modo de resumir as maneiras distintas dos grupos”, conforme o sociólogo Michael Denning.
Do mesmo jeito que o dinheiro arrombou a cultura, tornando-a “fácil” e imediata – basta ter dinheiro –, embruteceu a ética, a educação, a convivência, a gentileza e o olhar de afeto para o outro. É claro que também embruteceu o romantismo, o encanto e o próprio amor. Não que o dinheiro seja uma coisa ruim, é óbvio que não é, mas quando o seu poder de dano e corrupção de valores se mostra espumoso em conceitos e sentidos humanos, aí os próprios conceitos se mostram socialmente doentes. É nesta fenda teórica que sociólogos como Zygmunt Bauman escrevem livros como Amor líquido e Vida líquida.
Talvez o problema nem esteja em cidades já “decaídas” como Rio ou São Paulo, em termos de parirem suas bandidagens a seus modos. O tráfico carioca; o trânsito-com-motoboy paulistano; e a estupidez de uma classe média conservadora e violenta como ensina Chaui. Essas sociedades que se danem, berrará o intelectual desesperançado com um “conserto”. O problema é quando esse baixo clero axiológico chega a cidades que macaqueiam São Paulo sem ser São Paulo. Se o poder paulistano lhe garante certa blindagem, a ausência desse mesmo poder noutros lugares expõe um outro viés patético, que é o ridículo da imitação: o eu não quero ser eu, quero ser ele.
É por exemplo a mocinha “totalmente” bonitinha, esticadinha, magrinha, grudada num celular brilhante-rosáceo, em seu carrão, “naturalmente” produzida e louro-alisada num preparo que leva semanas, com um andar altivo e, claro, autoritário e conservador. Reacionário. Esse modelito tem se repercutido para províncias são-pauliformes. Pode-se até arriscar que o próprio ridículo seja mais aceitável numa sociedade naturalmente ridícula, do que numa apenas desejosamente ridícula. A síntese é que essas últimas, interioranas, têm “salvação”. Aqui começo a apanhar dos antropólogos, se é que a surra não começou lá em cima.
A chamada classe média enfrenta diversas visões. A primeira é que há um disfarce cínico. Muitas vezes quando se fala em classe média se está mentindo descaradamente: fala-se numa elite poderosa que de média tem pouco. Aí o mesmo Denning (A cultura na era dos 3 mundos, p. 228) “confirma” Chaui: “As elites capitalistas não são partidárias da democracia”. Ora, onde não há desejo democrático há a vontade de a minha escolha ou valor valerem mais do que o do outro. Entram em cena o autoritarismo e a violência.
Não há de o que se orgulhar de uma classe média, ou elite que seja, com esses padrões conservadores e violentos como os descritos por Chaui. O interessante é que esses senhores e senhoras se dizem educados e polidos. Acham que saber ler palavras em inglês ou possuir um carrão faz de qualquer um uma pessoa educada. Não faz. Educação é dar a vez com prazer. Educação é saber esperar com paciência e sem zanguinhas. Educação é reclamar menos por tudo. Educação é negociar em vez de “procurar os direitos”. Educação é querer bem ao outro. Educação é afeto gratuito. Educação é ensinar ao filho mimadinho que ele não é o umbigo do mundo e que se berrar incomodará sim os outros.
Para ser simplista e rápido, o nó górdio está na educação. A crise da classe média, dos mocinhos e mocinhas irritadiços em seus carrões passa diretamente por aí. O problema é que grande parte da classe média entende que educação é conquistar dinheiro; cargos em empresas; cursos da moda; tudo para comprar o tal do carrão e poder estacioná-lo ocupando três vagas. Aí quando são lidos como conservadores, reacionários e violentos, ou estúpidos e boçais, abrem um sorriso semi-nervoso de negação. Mas o príncipe não se faz pela roupa, pode estar aos trapos e sentado ao meio fio, será príncipe. Chaui é a nossa vingança. Jean Menezes de Aguiar.