sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Processo civil um olhar

Mariza, cada dia mais linda.
 

1 Um juiz em interlocutória preclusa decide pela intervenção iussu iudicis ao autor. Este tenta citar por diversas vezes e não consegue. Muitos meses depois o autor peticiona "desistindo" da ação em face desse réu. Um novo juiz homologa a desistência e sem esperar o interregno contestatório ao réu originário determina que o escrivão certifique o decurso in albis da defesa. O escrivão "conserta" a interlocutória judicial dizendo que o prazo defensivo tem a seu favor o CPC, art. 241, ante a pluralidade no polo passivo que impõe o início da defesa à última juntada de mandado cumprido. Daí:
1) errou o novo juiz ao aceitar a desistência de uma ação que ao autor se lhe foi imposta pela intervenção iussu iudicis?
2) errou o autor ao desistir de algo que se lhe era uma imposição, logo uma intangibilidade processual - não se desiste de o que não se propôs-?
3) errou o juiz ao tentar impor preclusão temporal à defesa antes da juntada do último mandado cumprido?
4) errou o escrivão ao consertar a interlocutória do juiz?
5) tem o escrivão poder para "determinar" prazo? (ao lado dos prazos legal e judicial háaveriao prazo "cartorial"?
6) o novo juiz é obrigado a chamar o feito à ordem e redeterminar a intervenção iussu iudicis, ante uma preclusão pro iudicato?
7) a questão da completude do polo processual já preclusamente determinada é de ordem pública e, por isso, "indesistível", como quis o autor?
8) o caso é de "revisão" do juiz a ato ordinatório do escrivão, CPC, 162, par. 4o?

 

2 Há numa contagem pretensamente completa 30 autores brasileiros que dão embargos declaratórios de interlocutória. Há quem chegue a dar de despachos de mero expediente, sob a lúcida alegação de que contraditoriedades, omissões e obscuridades não podem viger numa decisão ou despacho a qualquer termo. Mas o STF, salvo Marco Aurélio, nega declaratórios à decisão monocrática do relator, dizendo que a cabida é diretamente o regimental (agravo interno). A ser assim, se se opuser o declaratório dessa monocrática precluirá ao extraordinário, ainda que o TJ recorrido aceite e dê provimento! É formidável isso, porque pelo "desejo" do Supremo ter-se-á uma monocrática potencialmente contraditória ou omissa ou obscura tendo que se levar essa epistemologia corretiva ao colegiado do TJ não sob declaratórios, claro, mas sob regimental, numa tergiversação teleológica do próprio regimental. Daí, dane-se o cabimento dos declaratórios na espécie, danem-se os 30 autores que "ensinam" ciência processual, e dane-se a própria ciência, tudo para valer a vontade do Supremo que chancelará precluso temporalmente o extraordinário pela oposição de declaratórios sobre a decisão do relator. 
 
 

3 O CPC, art. 284 é um "direito subjetivo processual" ao erro, outorgado ao autor, na medida em que a inicial só possa ser rechaçada, naqueles moldes, se o autor não recompuser eventual errância sua ou mesmo dificuldade intelectiva do juiz. Sabe-se que direito processual não é ambiência para outorgas de direitos subjetivos, autores bastantes científicos e seniores do processo não reconhecem ser o CPC um potencial chancelador de direitos subjetivos, mas é sedutor se ver o bom e velho 284 como recocnhecedor de direito subjetivo processual ao erro. Numa visão pragmática, a indeferibilidade da inicial sujeita à oportunização do autor com o conserto, expõe uma deliciosa natureza jurídica não de uma clássica facultas agendi, no sentido dum facere ou non facere, mas no sentido de que o juiz só possa agir no indeferimento se ofertar ao autor o conserto. O que pode ser isso se não um direito outorgado pelo CPC? Foça-se a barra aqui, admita-se, mas essa natureza jurídica parece ser sedutora.

 

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O intelectual assusta

Que isso rapaz, uma loura dessa e você enrolado com livros?


Artigo publicado nos jornais O DIA SP e ANÁPOLIS (GO) 20.9.12

                Outro dia “comentando” uma análise sublime da Arnaldo Jabor, leitores de internet destilavam fúrias e ofensas. A inveja é uma coisa antiga. Pareciam torcedores fanáticos e ideológicos de um time inimigo, com seus ódios fundamentalistas. Maomé foi zombado por um cineasta americano e em nome disso religiosos assassinaram um embaixador e feriram pessoas. A França, também esta semana, fechará 20 embaixadas e escolas em diversos países por causa de um de uma piada em jornal com esse mesmo Maomé. A semente do fundamentalismo já está no Brasil, inclusive com políticos e candidatos.

                O intelectual encanta a alguns e assusta a outros. Mas assusta os assustáveis. Há quem opte por viver horrorizando-se, magoando-se. Que opção trágica; que gente chata. Também há burros velhos, mais burros do que velhos, com medinhos de demônios, capetas, infernos, diabos e duendes. Que gente cansativa. Esses detestam intelectuais, os que compõem o livro Playboy – as melhores entrevistas, como Boni, Chico Buarque, Henfil, João Saldanha, Lobão, Nelson Rodrigues, Pasquim, Paulo Francis, Tom Jobim e outros.

                Mas o que é um intelectual? Não há uma definição exata para o que possa ser um intelectual. É possível se delinear o que ele não é. O intelectual não é um obediente, domesticado, seguidor de modismos & tendências, preocupado com o que vão pensar dele, de sua imagem, seu penteado, sua roupa e seu discurso. Por este plano de o que ele não é, percebe-se o que ele é: cabeça aberta, informado, inteligente, culto e produtor de conhecimento, de leituras sociais, de críticas.

                O intelectual não é um anarquista de modos, um negador compulsivo da ordem, ainda que possa desprezá-la com todo a sua fé anárquica seguida de uma gargalhada perfumada a uísque. Também não é alguém que apenas se fantasia para parecer in, descolado ou aderido a um movimento Cult, fashion, ou qualquer dessas idiotices sociais. A fantasia social urbana - roupas multiespalhafatosas, despenteados cuidadosos a laquê, a obrigação da tatuagem e o provincianismo visual conhecido como look (fulano de look novo)- é utilizada para enganar. Muitos em cidades como São Paulo vendem essas imagens transformativas. Isso engana a quem mede tudo pela aparência. No Brasil atual, a figura urbana do intelectual, para muitos, chega até a exigir uma aparência “descolada”.

                Nos EUA os intelectuais passam por um relativo processo de extinção, e nada muito recente. Movimentos como academização, profissionalização, carreirismo e aceitação de cargos no Poder são apontados por estudiosos como alteradores do conceito de intelectual. Este deixou de ser um produtor puro ou autônomo de conhecimento e passou a ser um contratado das universidades ou de centros de poder. A diminuição dos intelectuais vai se acentuar nos anos 1960, com a morte do Greenwich Village, que imperou como bairro boêmio desde 1900. Ali também, com o declínio da boêmia dar-se-á o sumiço dos intelectuais. O mundo não ficou mais inteligente. Pode ter ficado mais rico e belicoso, mais fútil e interligado.

                O termo intelectuais parece ter sido cunhado em França, por época do famoso processo Dreyfus, em 1890. Artistas, escritores e professores, incluindo-se aí Emile Zola, contestaram o processo por meio de uma petição. A reação a esse grupo, com Ferdinand Brunetière à frente foi: “Quanto a essa petição que está circulando entre os intelectuais!, o mero fato de se ter recentemente criado essa palavra intelectuais para designar, como se eles fossem uma aristocracia, indivíduos que vivem em laboratórios e bibliotecas, indica uma das mais ridículas excentricidades de nosso tempo”.

                Nunca houve isso de aristocracia. Há meras semelhanças e traços de identidade de manejo das culturas. Repare-se, não traços de identidades culturais, mas identidades de manejo, ou seja: a crítica, a abertura pensante, o destemor por contestações. Alie-se a isso, sempre, a produção. Falar em intelectual é falar em produção, textos, livros etc.

                Uma das tônicas mais vivas na caracterização do intelectual é a inteligência. A palavra russa intelligentsia foi cunhada em 1860 e certamente é a feição mais próxima do termo intelectuais. Assim está em Russell Jacoby (Os últimos intelectuais). Outra é a sensibilidade às contradições e contestações, apontada por Norberto Bobbio (Os intelectuais e o poder). O lúcido ateísmo de Darcy Ribeiro perante o leito de morte de sua mãe nunca o impediu de ser, ao mesmo tempo, um apaixonado pelas mulheres, pela poesia e pelo amor. A poesia e a arte; o sonho ao lado de uma visão da realidade com pitadas de pessimismo - o realismo bem informado - são temperos do intelectual.

                O intelectual assusta porque não se intimida com termos, palavras. Arnaldo Jabor abusa de conceitos “proscritos” por uma preconceituosa sociedade da hipocrisia que jacta sua vitória do capital. Seus textos se arejam com palavras poéticas como “imbecil”, “burro”, “idiota”, “canalha”, “piranhinha”, “subúrbio”, “calhorda” e outros deliciosamente piores. Assustáveis não quererão ler Jabor, não pela inteligência do texto, mas pelo preconceito formalista com as palavras.

                Assim será com Nelson Rodrigues, o divino “tarado brasileiro”, que tratou das cunhadas, primas e tias ávidas. Com Nietzsche e Richard Dawkins, que desmontaram Deus. Com Noam Chomsky que contou ao mundo os verdadeiros EUA. Em 1969 jovens teóricos nos EUA criaram o Antipode - A radical journal of geography, buscando, sim, um radicalismo e discutindo temas não tradicionais como a geografia da pobreza, do subdesenvolvimento e do urbanismo. Não se amedrontaram com o termo “radical” que, para muitos, é um perigo e uma insanidade.

                Quem vai se adequar muito bem ao termo intelectuais serão certos jornalistas, aponta Jacoby, pelo tipo de produção e publicação que manejam. Vê-se na mesma obra que muitos médicos, advogados e outros profissionais abdicaram de produzir para o público, um dos traços essenciais dos intelectuais. Ensimesmaram-se nas profissões e não exercitaram a crítica e o pensar sociais. No Brasil, por exemplo, não poucos advogados posam e agem como caretas, ortodoxos e, invariavelmente, autoritários, talvez na vã suposição de que isso “passe” seriedade. Já competência é outro fator.

                O que é “crítica” natural para o intelectual, pode ser sinônimo de radicalismo ou grosseria para muitos. Será que Jabor lê as diatribes de 3 linhas que lhe são enviadas nos quadradinhos famélicos “interativos” para leitores, os quais não cabem produção, apenas frases? Aposto que não. Em Jabor certamente o uísque lhe dá mais prazer e felicidade. Jean Menezes de Aguiar.