sexta-feira, 19 de outubro de 2012

José Claudio das Neves, professor do coração


Imagem provisória. depois virá uma de Claudio.
 

                Pelo dia do Professor. Este texto é uma homenagem a um grande professor de piano que tive, José Claudio das Neves (UFRJ e Teatro Municipal do RJ). Fui seu único aluno particular, em razão da longa amizade dele com meu pai desde os tempos de solteiro, quando meu pai ainda era músico. Claudio nunca cobrou um tostão pelos anos de aulas. Era pura amizade. Uma tia tentou que ele desse aula a um primo meu, ele gentilmente negou. Essse grande “rabugento”, inigualável admirador do uísque, meio ateu, inteligentíssimo e estudioso de primeira hora, contribuiu para a formação do meu caráter como um inesquecível professor.

                Meus pais me forçaram a aprender piano, entendiam que este aprendizado era importante. Graças ao piano, depois trabalhando profissionalmente como músico pude conhecer muitos países. Só posso agradecer a meus pais por terem sido “autoritários” comigo, como diriam pais idiotas dessa atualidade viadinha.

                Comecei a estudar piano com 4 ou 5 anos de idade e passei por várias professoras, além dos cursos de iniciação na UFRJ, no Passeio Público, RJ. Com um razoável ouvido, conseguia “enganar” às bondosas professoras em leitura e teoria musicais e reproduzir as peças de ouvido. Ou elas se deixavam enganar por carinho. Como eu poderia, por exemplo, driblar uma Deusnice Guerra, professora que em sua sala no apartamento em Ipanema tinha não apenas um, mas dois pianos de cauda? Um para os simples mortais, seus alunos, e outro que ela usava para seus concertos. Quando eu chegava com minha mãe para aula, ficávamos do lado de fora ouvindo boquiabertos concertos e estudos explendorosos que ela imediatamente parava quando entrávamos.

                Passei por diversas professoras queridas. Uma delas, Aida Erlich veio a mim, eu já adulto, certa vez, num show em que eu acompanhava Eliana Pittman, no Hotel Sheraton, no Rio, e emocionada me abraçou muito e disse coisas lindas sobre como eu estava tocando que, claro, ela era uma das responsáveis.

                Aí topei com a muralha musical: Claudio, o velho amigo de meu pai. Claudio era violinista por formação (olha que encrenca), depois pianista e percussionista, além de exímio vibrafonista. Quanto mais uísque melhor tocava, dizia meu pai. Custei a entender isso, mas depois adorei entender. Seu método como professor de apenas um aluno particular era meio russo, ou seja, sério. Não tinha nada de “lúdico”, essa coisa safada muito usada atualmente para enganar tolinhos. Pianistas russos têm uma piada para quando o sujeito não executa muito bem alguma coisa no piano, dizem que é um pianista que estuda “somente” 6 horas por dia, e não 8 ou 10. Claudio pensava mais ou menos assim. Aí meus problemas começaram. Eu era um adolescente basicamente farsante no piano e os anos que passei com Claudio, ou mudava eu, com 15 anos de idade, ou ele, com 40. Como a corda sempre arrebenta no lado mais fraco, devo a ele muito de o que aprendi.

                Nas vezes que ia à minha casa para jogar conversa fora com meu pai, de vez em quando me tratava como “vagabundo” perante meu pai, num misto de carinho e reprimenda, próprio de quem sabe que tem que trans-formar aquela pessoa tola e tonta que custava a tomar jeito, eu. Também, antigamente, os pais não iam querer “processar” um professor que chamasse seu filho de vagabundo. Antigamente os pais acreditavam na verdade do professor, hoje acreditam na mentira do filho mimado. Eu ficava mudo ouvindo ele tocar, com meu pai, com acordes geniais e complexos, incapaz de atrapalhar. Cláudio espetacularmente rabugento e intelectual não tinha tempo para um pirralho de 15 anos, certamente chato, eu, que provavelmente só teria bobagens para falar e tentar me afirmar. Na casa de meus pais, não dava muita conversa a mim. Vez em quando, dizia que eu não seria um pianista, porque não levava a coisa a sério. Era de uma austeridade de uma professora de balé clássico de Varsóvia.

                Quando passei no exame teórico e prático da Ordem dos Músicos do Brasil, em 1976, e obtive a carteira de Músico Profissional, o que para mim era muito, Claudio fez uma cara misto de desdém e obviedade. Eu tinha que passar, não havia hipótese de eu não ser aprovado, primeiro porque ele houvera me preparado não para um mero exame apenas, mas para ser músico. Ainda porque com o seu nível musical elevadíssimo, certamente via aquela prova como um mero rito de passagem meio óbvio, ou bobo.

                Aí fui para noite carioca trabalhar como músico, ainda totalmente imaturo musicalmente. Graças exclusivamente à boa vontade de grandes músicos, todos mais velhos, que me aturaram por algum tempo. Depois comecei a viajar com artistas e saí da noite. Depois a noite acabou. Essas referências históricas são importantes para mostrar o distanciamento que então se deu entre mim e esse amado professor.

                A vida de adulto e profissional nos distanciou. Meu pai continuou grande amigo de Claudio, mas eu mesmo tive que cuidar de mim e isso me ocupou muito. Sempre tinha referências daquele Claudio querido, mas uma coisa e outra, acabava não encontrando-o. Muitos e muitos anos depois, já em dezembro de 2000, uma cantora carioca Dayse Baqui me chamou para um trabalho avulso numa casa noturna em frente ao Canecão, no Rio. Eu tinha acabado de me mudar para São Paulo, bastante encantado com a cidade paulista. A formação da banda que iria acompanhar Dayse era poderosa, com músicos realmente bons, aceitei na hora e fui ao Rio.

                Aí o marcante da história. Meu pai e companheiro das todas as minhas noitadas de músico até sua morte há um mês, é claro que compareceria nesse trabalho meu. Mas para minha surpresa levou um convidado mais que especial, Claudio. Foi um dos grandes presentes de meu pai.

                Acho que Claudio contava ali com 64 anos de idade, mas não perdera seu jeito de músico, era um "senhor" mas quebrava essa característica. Usava uma pulseirinha e um anel no dedo mindinho, coisa que conservadores idiotas diriam não se coadunar com a idade. Aquilo me chamou muito a atenção, talvez porque eu sempre tenha usado bugigangas assim. Foi como se eu tivesse tido uma resposta do meu professor: é possível. Gostei muito de ver aquilo.

                Claudio encontrou seu aluno já homem feito, com marcas no rosto de uma vida modesta e dedicada ao estudo, uma barba meio marxista e talvez o mesmo olhar de insegurança e respeito diante do professor-deus. Tive a impressão de ele gostar de o que viu, num primeiro momento. Eu, de minha parte, estava encantado e sabia que teria que tocar para o professor, tarefa das mais difíceis, muito mais do que as apresentações nacionais e internacionais. Ele foi muito gentil e amável, curioso e como um pai querendo saber do filho distante que não vê há anos. Talvez nossa separação aí beirasse coisa de 20 anos. São os absurdos da vida.

                Ali estava o mesmo Claudio, sério, mas já me dando atenção, certamente com seu uísque, suas piadas ácidas e inteligentes, seu quase-humor intelectual e uma mente ligeira e sacana. Andava estudando cosmologia e cosmogonia, coisas que meu pai achava estranhas; eu adorei saber. Há poucos anos eu houvera sabido por meu pai que Claudio finalmente experimentou maconha em casa. Encheu o cachimbo de erva e fumou tudo de uma vez só. Capotou, claro. Disse que dormiu e achou uma merda. Revelou que seguia fiel ao uísque. Adorei saber daquela experiência pessoal científica. Claudio era um cientista.

                Esse professor sempre foi um ícone para mim, quando “tirava” músicas no piano. Sua harmonia era complexa, densa, mas correta. Não seria ele um pianista velocista, como eu busquei ser, mas um harmonizador poderoso. Ele mesmo não se dizia um pianista, mas formado em Orquestração e Regência, era o cara. Contou a meu pai que certa vez em Volta Redonda, onde eles moravam quando jovens, um senhor veio a ele pedindo que ele ensinasse piano à sua filha, uma criança, chamada Tânia Maria. Ele ouviu a moça e fez pouco caso. Muitos anos depois ligou a TV, e viu a já grande pianista de jazz apresentando-se, totalmente famosa, na França. Disse que chorou de emoção.

                Montamos os instrumentos no palco e cada passo meu e plug que ligava, pensava em como o professor estaria me olhando e medindo, fiscalizando, ele tinha o direito, afinal era o trabalho musical que ele me preparara. Fizemos a apresentação, sob olhos atentos musicais de meu pai, olhar este que eu me acostumei por toda minha vida. Mas também de um Claudio, que finalmente me dava o “direito de defesa”: mostrar a ele que o pupilo houvera aprendido alguma coisa. A formação do show era bateria, baixo, guitarra, cantora e eu de piano elétrico, instrumento que peguei emprestado com o querido amigo e grande Anselmo Mazzoni. O trabalho rolou redondo, e, com ajuda de uísque, deu prazer a todos. Os músicos que tive a sorte de tocar ali eram realmente muito bons. Tudo deu certo. Dayse está no meu Facebox, acho que ela deve se recordar de quanto aquele dia foi importante para mim.

                Saí do palco como um garoto que faz sua primeira apresentação para um pai austero e fiscal, querendo ouvir alguma coisa daquele Claudio ali caladão e atencioso. Fui indisfarçavelmente direto na direção dele e, claro, disparei: –  e aí, errei muito? E nesse momento ouvi uma das coisas que talvez mais tenham marcado a minha vida. Com a mesma franqueza e objetividade de sempre, Claudio disparou meio concordante: “é, o vagabundo aprendeu a tocar”. Aquilo para mim foi um ato de amor, mas também uma avaliação espetacular. Não seria do seu perfil falar se não fosse verdade. Meu pai deu um riso de vitória e gozo. Eu devo ter concordado com aquele professor a quem ja houvera feito uma música com letra para ele. Estávamos aí no final de dezembro de 2000, acho que dia 29 ou 30. E essas foram as últimas palavras que eu ouvi daquele “professor do coração”, título da minha música. Quatro meses depois ele morreu. E ficou um buraco surdo na minha vida.

                Claudio nessa época já estava casado com uma moça bem mais nova que ele. Claudio casou “tarde”, e teve 3 filhas. Meu pai dizia que a esposa devia ser uma santa para aguentar aquele rabugento, como se meu pai não fosse um. Mas o amor é assim, as santas e os rabugentos. Nos muitos anos de separação, acabei não fazendo contato com a família de Claudio, só meu pai fazia. Por fim, perdi totalmente a direção da esposa e filhas que nunca cheguei a conhecer. Adoraria dizer àquelas meninas o quanto aquele cara foi maravilhoso e importante para mim, um homem que me ensinou a ver as coisas sérias e difíceis ligadas à música e ao piano. Este foi o meu querido professor que homenageio. Talvez ele mesmo não tenha sabido dessa importância, um dos defeitos da vida, um dos meus muitos defeitos. Gostaria que meu pai também tivesse lido esse texto, mas no mês passado ele resolveu se ir. Agora eles estão juntos. Um beijo para ambos. Jean Menezes de Aguiar.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

O fenômeno Anápolis

Não é montagem: é um Mirage na praça. Isto é Anápolis.

Artigo publicado nos jornais O DIA SP e O ANÁPOLIS(GO) - 18.out.2012

                Números e análises na cidade de Anápolis, Goiás, da eleição havida semana passada podem permitir leituras sociais com surpresas ou paradoxos interessantes para todo o país. Leituras são interpretações sempre válidas, sem a tirania cartesiana do certo e do errado. Alguns fatores autorizam determinada leitura e por isso ela se torna legítima. Há uma lógica nisso e para a lógica só interessa a relação funcional entre as premissas e conclusões, não as verdades envolvidas. Cada observador social  pode chegar a resultados lógicos diferentes, e todos eles legítimos.

                O grande gancho a ser explorado da eleição de Anápolis é o inusitado percentual de 88,4% de votos para reeleição do prefeito, um recorde nacional. E mais, em época de Mensalão, um prefeito do PT. O mesmo que na primeira eleição abriu os trabalhos com míseros 3% nas pesquisas. Há leituras aí.

                Uma primeira interpretação que contraria a alguns simplistas de plantão é o fato de o PT ser um partido de esquerda. Não se precisa estudar Norberto Bobbio, Direita e esquerda, para se concluir que os conceitos de direita e esquerda não morreram. Ainda que possam ter sido razoável e historicamente alterados. Nem se diz que esquerdistas seriam jacobinos e direitistas seriam reacionários. O fato é que o PT jamais foi um partido “de direita”. Isso ofenderia tanto ao povo da esquerda quanto ao da direita. E uma “conclusão” já sairia daí, desses 88,4%: a de que, “então”, a sociedade de Anápolis é “de esquerda”. Agora posso ter comprado briga com a cidade inteira.

                João Marcos Feitosa, em trabalho publicado na internet, intitulado A influência evangélica na sociedade Anapolina, aponta para uma “tradição inventada de que Anápolis seria a cidade mais evangélica do Brasil”. Mas onde há fumaça há fogo e a quantidade de igrejas por metro quadrado em Anápolis parece não deixar mentir essa tal tradição. Aí, pula-se para a reportagem da revista Isto É, 1.748, intitulada Religião e voto: “Os partidos escolhidos pelos políticos evangélicos são, em sua imensa maioria, os de direita”, e “A comunidade evangélica brasileira está longe de ser de esquerda”. O tônus conservador se revela, corretamente, com toda nitidez na reportagem.

                Se Anápolis é tão evangélica assim e se a dita religião é “própria” dos partidos de direita, remanesce um paradoxo interessante de 88% dessa sociedade ter optado por um prefeito do PT.

                Haverá uma quadra teórica aí. Ou 1) esta sociedade teria “se tornado” de esquerda, o que é bastante improvável; ou 2) o conceito de esquerda para esta sociedade não foi tão ideologicamente ofensivo ou repugnante a ponto de impedir o voto na esquerda; ou 3) a carga teórica direita-esquerda não importou para esta sociedade; ou 4) a carga não existe mais em nenhum lugar, consideradas as sociedades em geral como consumistas que só querem resultados imediatos, pragmáticos, utilitarísticos, sem ideologias e substratos culturais profundos.

                Ainda, é claro que a gestão anterior do prefeito reeleito considerada de sucesso por quase 90% do eleitorado é um ponto primeiro e imensamente importante. E aqui outro embate teórico: a gestão de sucesso versus a ideologia do gestor, no caso de esquerda. Mesmo sendo Anápolis, presumivelmente, de direita –admita-se a “classificação” genérica –, a sociedade não titubeou, “capitulou” a uma gestão boa e deu de ombros a discussões “teóricas” de direita e esquerda. Disse em alto e bom tom: às favas com a ideologia. Falta esclarecer se isso poderia ter querido dizer uma “mudança” do tipo quem “era” de direita passou a ser de esquerda. Nada é tão direto assim, mas que é instigante não há dúvida.

                No caso de prefeitos e vereadores avultam os reflexos imediatos no asfalto das ruas; na limpeza urbana; na construção de praças de embelezamento, esporte e lazer nos bairros de todos; nos semáforos funcionando em cruzamentos para evitar acidentes; numa guarda municipal ativa e presente. Note-se que isso tudo é direito do povo, jamais é favor do gestor público. É claro que nem tudo isso é atendido em Anápolis. Não se está a dizer que a cidade possa ser um “modelo” de impecabilidade e sem problemas. Infelizmente não é. Mas o fato é a população votou olhando certas mudanças e isso não foi um imediatismo criticável, afinal quem vai cuidar dessas coisas na porta de casa de cada um?

                Mesmo sob um feitio conservador – como de resto é bem nítido no país todo, que fique bem claro –, os bolsões quantitativos de pobreza em Anápolis reelegeram o prefeito maciçamente. Mas para esse percentual tão alto é claro que também a chamada classe média (que passou a envolver a alta) entrou na dança. E parece que todos estão felizes.

                O prefeito pode ter matado dois coelhos com uma cajadada só: agradado à parcela efetivamente desfavorecida e ao mesmo tempo a classe média, com embelezamentos e funcionalidades na cidade. Daí pode ter advindo o “às favas com a balela de direita e esquerda”. Se é que isso chegou a ocupar as cabeças votantes.

                Com esses 88,4% Anápolis deu inveja a muito marmanjo político velho de guerra em cidades vaidosamente tidas como uber urbanas e sofisticadas. Mas também mostrou ao país que é possível “ser feliz”. Se a unanimidade é burra, como teorizava Nelson Rodrigues, a coesão pode ser genial, e mesmo feliz. Não se chega a uma coesão de reeleição em níveis de 88,4% com enganação, mentira e apenas publicidade de candidato. Há uma parceria invejável entre gestor e sociedade. Politólogos vão estudar o fenômeno Anápolis seriamente. Mais, um fenômeno bastante difícil de se reproduzir, mas desejável que houvesse sempre. Daí, as lições valiosas.

                O problema classificatório de direita e esquerda, que parece ocioso ou teoricamente fútil, nas sociedades da pressa, do consumismo, do resultado e da falta de ética, envolve contornos graves. Parece haver um certo “disfarce” com esse discurso, mas observadores atentos distinguem facilmente quem é quem. Para alegria dos lulistas ou desespero dos contrários, Lula já chamou esse recordista Antonio Gomide para um “conversa”. Tomara que Anápolis não perca seu prefeito para um ministeriozinho aí qualquer.

                A revolução tão esperada pode começar no interior e não nas cidades tidas como “politizadas”. Um modelo brasileiro poderia denotar preocupações com atendimento verdadeiro ao social, como parece que já há. Bem diferente do mero slogan de Zé Sarney em 1985 “tudo pelo social”. Agradar a gregos e troianos sempre foi uma charada. Parece que o nosso alcaide aí descobriu uma fórmula. Agora é a sociedade manter viva a cobrança e a parceria. E o resto do país se interessar por saber como isso foi conseguido. Jean Menezes de Aguiar.