Além de tudo era Linda...
O conceito de luxo é das coisas mais interessantes que há, dada a sua grande maleabilidade. Pensa-se aqui em um luxo, por exemplo, na roupa, na moda, nos enfeites pessoais. O luxo sempre variou em todas as direções, nos plano das pessoas e no dos objetos e adornos. Também varia no contexto histórico, da evolução da sociedade, e no contexto geográfico, das diversas culturas. A biologia, por exemplo, veja só, mostra que uma fêmea de orangotango, num zoológico da Alemanha, empilha folhas de alface sobre a cabeça toda vez que vai se olhar no espelho. Não é lindo? Para aquela mocinha só falta o convite do Jockey Club, para o Grande Prêmio. Isso é o seu “luxo”. Ou a sua beleza. Está em Frans de Waal, A era da empatia, p. 198.
Um dos grandes problemas do luxo é que ele recepcionou um superproduto humano dos mais interessantes, um que mudou o conceito de luxo para sempre: a inteligência. Isso é importante porque o contrário da inteligência é um dos maiores “palavrões” sociais que há: a burrice. Ninguém gosta do termo. Como não há quem admita que seja burro, mesmo quem é, todo mundo jura que o seu o luxo é inteligente, não é um luxo burro. Mas para desespero geral, existem ambos os luxos: o inteligente e o burro.
O fato é que pode haver, também, o luxo inteligente, claro. Pessoas que têm dinheiro e querem se dar um presente incomum, um mimo ou realizar um sonho extravagante têm pleno e legítimo direito de fazê-lo. Ser rico nunca foi pecado. Mas até a forma de gastar o dinheiro requer um mínimo de inteligência. E todos temos nossas formas de luxo. Quando eu era estudante e comprei o Dicionário de política do Bobbio, a prestação, aquilo para mim foi um luxo. Só não dá para dizer que possa ter sido burro.
Mas o que é inteligência? Jean Pierre Changeux, diretor da unidade de neurobiologia molecular no Instituto Pasteur, ensina que “Nenhuma definição da inteligência é satisfatória (e jamais será), porque o termo cobre um conjunto de faculdades interdependentes, ainda difíceis de serem percebidas no plano experimental. Sua aparição no adulto resulta de um desenvolvimento lento e progressivo, em constante interação com o mundo exterior. Já Albert Jacquard, geneticista, professor na Universidade de Paris-VI, mostra que “A inteligência é uma qualidade polivalente: ela diz respeito à imaginação, à capacidade de responder depressa, de inventar novas perguntas, criar raciocínios lógicos. Os testes de QI refletem a capacidade de responder ‘sim’, enquanto a inteligência é a capacidade de dizer ‘não’”, em Entrevistas do Le Monde.
Há várias formas objetivas de se concluir por um luxo burro. Todos concordarão que o gasto com a mera ostentação é um luxo burro. A gorjeta ao manobrista com nota de 100 reais para mostrar à mocinha que o sujeito é rico também é. O acender o charuto com nota de 100 dólares numa festa não deixa dúvida. O lavar a mão com uísque para dizer que se esbanja fartura perante convidados é outra idiotice. Certamente esses exemplos não são de luxo, mas de pura imbecilidade. Mas quem “busca” luxo com ostentação não escapa muito de ser uma criatura patética. Mesmo com todo o juízo de valor que o conceito desafia.
O grande problema com o luxo é o “valor” que ele agrega e maneja, principalmente na criança e no adolescente, pessoas em formação. O conceito novelesco-burro-de-TV de luxo, por exemplo, deforma a própria noção de inteligência. Dá a impressão de que aquele luxo é um valor a se perseguir na vida e o que estiver fora daquele padrão é brega, cafona, feio, decadente, “pobre” ou ruim. Nem se discute aqui essa moda horrível do brega de qualquer lugar ou do urbanoide paulistano de hastearem a bandeira e se dizerem bregas ou urbanoides achando isso lindo ou politicamente correto. Há o brega, como há o atrasado, como há o provinciano, como há o preconceituoso sim.
Nas famosas “patricinhas”, por exemplo, todas se vestindo igual, com aqueles óculos-trevas-TV, bolsas de plástico, celulares em dependência química e adereços rivalizadamente iguais, não há, ali, a percepção de que essa imitação tribal do luxo, ou da futilidade, possa ser a negação da inteligência, da criatividade, da personalidade e da autonomia. “Pensar”, naquele segmento, talvez sangre. “Refletir” já gera coma. É triste, mas algumas realidades na Terra são tristes.
Por outro lado, a burrice entrou na moda. A instituição da “loura burra”, por exemplo, já se orgulha de ser assim, desde que tenha conseguido agregar um jogador de futebol ou cantor sertanejo como um BNDEs pessoal. A burrice não envergonha mais, basta ser bunduda e financeiramente vitoriosa. Ganhou consciência ontológica e passou a causar inveja. Quem diria que a imbecilidade seria desejosamente imitada. Mas entra em cena aí o fator dinheiro e alguém grita do quarto dos fundos: “- imbecilidade não, elas estão é bem”. Vivam os valores que dão essa elasticidade aos conceitos.
Mas o luxo é legítimo. Quem o pensador ou o cientista acham que são para criticar o luxo, a futilidade e a idiotice humanas? Suas críticas são válidas, mas se eles forem mesmo inteligentes, relativizam-nas automaticamente, para “aceitar” cada um do jeito que é. O mundo é muito grande e sempre coube os tontos, os avarentos, os metidos a intelectuais, os bandidos e os bonzinhos. Mas que uma conversa com pessoas inteligentes e geniais, e culturalmente refinadas (esse termo beira à futilidade, mas vá lá) é uma delícia para se gargalhar por horas, isso é.
A banda de Lulu Santos se chama Auxílio luxuoso, e não tem nada ali fora do padrão, é simplesmente maravilhosa, já a começar pela concepção e exigência musicais do roqueiro rei. Mas o luxo desafia a inteligência. O viva o luxo e padeça o bucho é um princípio até hoje plenamente vivido. Mulheres vivem repetindo que “este sapato está me matando”, e não percebem que essa equação é apenas um subproduto da burrice: elas continuam assim. Mulheres inteligentes, maravilhosas, passam por toda uma vida e não experimentam essa frase. Nem vivem apertadas em roupas que não lhes cabe para parecerem mais magras e outras curiosidades da vida nessa sociedade francesa de araque chamada Brasil. O capítulo da burrice masculina na roupa, visível no aeroporto de Congonhas, ligada ao luxo, é à parte.
Nossas imitações são belíssimas, olhamos o tal do primeiro mundo e queremos fazer igual. Há inúmeros luxos inteligentes no país, que não têm nada com ostentação. Mas, de novo, a eles se exigem pautas culturais e de sabedoria. O Projeto Tamar é um luxo no melhor dos sentidos. As músicas de Chico Buarque e Ivan Lins são luxos eternos. A obra de Oscar Niemeyer, que talvez exista daqui a 5 mil anos, outro luxo lindo. A fraternidade e o amor, coisas que saíram de moda, são luxos maravilhosos numa relação humana. Nem tudo está perdido, mas o luxo burro que espuma não serve para nada. Vivam a inteligência e o riso barulhento sem culpa. Jean Menezes de Aguiar.