A maior cachoeira do Brasil.
Artigo publicado no Jornal O DIA SP e no jornal O Anápolis, GO.
Na década de 1990 eu escrevia para o jornal Tribuna de Petrópolis, naquela cidade imperial do RJ. Os vereadores empossaram, num golpe, um ouvidor geral conhecido como Carlinhos da Jacuba, sendo que o trato era ele ser inexpressivo e obediente à Câmara. Três meses depois após um bafafá o trato se rompeu. O ouvidor foi à imprensa e revelou coisas absurdas, típicas do poder. Publiquei um artigo intitulado Abre a boca Carlinhos que me rendeu bobas ameaças de processos judiciais por parte de vereadores magoados. Tudo marola.
Tantos anos depois, um outro Carlinhos, incomparavelmente mais importante e poderoso volta à cena, o Carlinhos Cachoeira. Saído de uma cidade de mesmo porte, Anápolis, Goiás, onde ainda vive seu pai, Tião Cachoeira num modesto Hotel Palace, este Carlinhos, tem ligações para lá de poderosas. Tantas que passou a ser classificado como um perigo e está preso, encarcerado, tendo ido para um presídio federal de segurança máxima.
Mas como alguns homens do poder são previsíveis. Ou burros; ou temerosos. Não bastava mandar Cachoeira para uma prisão em sua cidade atual. Precisava ser numa segurança máxima, como se um comando de lojistas estabelecidos com caça-níqueis fosse querer resgatar Carlinhos da prisão, numa operação de filme americano. Ou há qualquer coisa por trás disso? Sempre há.
O perigo óbvio de Carlinhos Cachoeira não é com a possibilidade de cometimento de crimes que porventura ele possa ter. Mas com a taquicardia que ele pode gerar em famílias inteiras de governadores, delegados, juízes, desembargadores, prefeitos, senadores e até padres, os envolvidos com ele, segundo reportagem de Leonencio Nossa, do Estadão. Teria sido a prisão dele nos confins de Mossoró, RN, escondido numa penitenciária de segurança máxima uma tentativa de calar Carlinhos, isolando-o? Talvez. Daí o título da matéria de hoje: Abre a boca Carlinhos!
Marquinhos Cachoeira, irmão de Carlinhos sintetiza a situação de uma forma muito clara: “O problema da nossa família é a corrupção. Mas a polícia só quer caçar a gente. Os políticos vão ficar impunes?” A resposta lúcida é um retumbante e formidável sim. Vão. Para a tragédia de um país que cada vez mais seleciona seus detentos, em pobres e desclassificados, que não é o caso de Carlinhos que já já estará na rua, os “políticos” continuarão ricos e soltos. Até o “dr.” Demóstenes poderá viver seu inferninho astral tranquilo, seus parceiros não o deixarão. No máximo aposenta compulsoriamente com seus 30 mil líquidos e a história continua.
A contravenção, no caso, parte da história do pai de Carlinhos, o velho Tião Cachoeira. Hoje com 82 anos, pai de 14 filhos, e certamente cheio de casos para contar de uma vida rica, a contravenção do pai talvez seja hoje “poética” como sempre foi para o Brasil. Tião era motorista de caminhão, puxando argila de MG para a construção de Brasília, tendo começado a trabalhar como ambulante e apontador de jogo do bicho. Tornou-se sócio de Pintadinho, bicheiro de Anápolis e tempos depois Carlinhos assumiu o negócio todo. Com o governador Maguito Vilela, do PMDB, Carlinhos ganhou de presente a concessão da Loteria do Estado de Goiás, a LEG. Olha aí o poder e a contravenção agarradinhos.
O Brasil sempre gostou da contravenção. Sua classe média, e não só ela, poemizou, cantou e decantou a “fezinha” no jogo do bicho. Grandes intérpretes da MPB a entronizaram. A ditadura pôs no colo a figura emblemática de Capitão Guimarães, o ex-milico que virou presidente de escola de samba pela mão da contravenção. O povo aprendeu a reverenciar os bicheiros cariocas como mafiosos tupiniquins do terceiro mundo, num misto de paroquialismo suburbano e inocência desejada de que o bicho não se envolvia com tráfico. Que inocência.
Talvez persista uma aura psicanalítica social, relativamente à família Cachoeira, de perdão. No fundo muitos ainda se perguntam por que o filho de “seu” Tião “caiu”. Muitos não entendem que isso tudo é jogo de cena, é marola, é apenas um tropeço do Dr. Cachoeira. A prisão brasileira não é feita para os amigos do poder. Carlinhos é um homem bem arrumado, casado com uma mulher que a revista Playboy quer pelada em suas páginas, e a contravenção sempre foi isso: a alegria do carnaval brasileiro na Sapucaí e no mundo.
Tudo bem que da velha contravenção “veio” sua irmã perversa, a corrupção. Hoje, o “seu” Tião seria visto nas hostes do poder como uma caricatura do jogo do bicho. Até o tráfico se tornou cafona e lambão. O que manda agora é a compra, ou o aluguel, de senadores da República, Governadores e outros citados acima. E como parece que todos no Estado estão à venda, tudo fica fácil. A polícia federal que parece poder tudo, acaba sabendo de coisas que “não deveriam” ser reveladas. Mas Carlinhos se apressa, de dentro da prisão, para acalmar os ânimos. Malandramente, como bom contraventor, dispara, sobre a frase do irmão indignado para que peguem os políticos também, que os desabafos em família são toleráveis. Carlinhos não está só, nunca esteve. Sabe disso.
Talvez o título da matéria, aqui, não devesse ser Abre a boca Carlinhos, num inocente apelo para que ele contasse o que sabe. Mas Viva Carlinhos, no sentido de não calarem o homem num subsolo qualquer de uma carceragem, para tristeza de “seu” Tião. Carlinhos não é a ponta de um iceberg, não é nem o gelo. É o mar. Mas o que afunda navios, há séculos, são as lâminas de gelo, e estas são o Estado brasileiro. Já saiu a CPI-promotion-quero-aparecer-na-TV dos políticos. Mas responda rápido: quem é pior, o corruptor privado ou o agente do Estado assalariado pelo povo?
A visão de uma náusea passiva da corrupção talvez seja escatológica, mas a história brasileira é assim. Os do poder são convidados a se aposentar com todos os mimos bancados pela sociedade anestesiada. Os milionários corruptores não perdem nada, a não ser alguns míseros milhões de reais com advogados, o que não lhes arranha a fortuna. E o povo continua sambando na Sapucaí. Carlinhos já deu a entender que não abrirá a boca. A famiglia de Brasília e adjacências está acalmada. “Seu” Tião em breve terá o seu filho de volta num almoço de domingo. Sempre foi assim.