sexta-feira, 1 de junho de 2012

Senso comum e ciência em Boaventura S.S.

 Não há qualquer ciência nesta delícia aí. Há emoção, ginga e uma deliciosa sabedoria popular.


O sociólogo do direito Boaventura de Souza Santos é um gigante em filosofia da ciência. Sua obra Um discurso sobre as ciências é uma delícia pela deslinealidade, juntividade (isso é Morin) e manejo heterodoxo de questões fundantes e organizatórias da ciência. Mas sua quíntupla hipótese de trabalho contém 1 vertente que a filosofia da ciência provavelmente concorde, mas a ciência em si torceria a cara seriamente - particularmente gosto dessa dicotomia e ela é bem perceptível nos autores.

Ei-las todas: 1) término da distinção entre ciências naturais e sociais; 2) o polo catalisador para a síntese será as ciências sociais; 3) para isso, as ciências sociais rejeitarão todo o positivismo lógico ou empírico ou de mecanicismo materialista ou idealista mais a revalorização das humanidades; 4) não se visa a uma ciência geral unificada, mas conjunto de galerias temáticas convergentes; e 5) à medida que se der a síntese tenderá a desaparecer a distinção hierárquica entre conhecimento científico e vulgar e a prática será o fazer e o dizer da filosofia da prática. O calcanhar de Aquiles e talvez deixado por último no grande professor Boaventura é o quinto item. Meio difícil de engolir. Metodólogos, tanto “saídos” da física teórica como Mario Bunge e Thomas Kuhn, como da Biologia, como Ernst Mayr (a rigor este reclama uma metodologia própria, biológica) e Paulo Vanzolini parecem ser unânimes, a tantos outros, em não “conseguir” “misturar”, um tanto quanto “pós-modernamente”, os conhecimentos científico e vulgar. O pós-novo e mesmo a mania do tal do “pós”, num pós-tudo, em querer relativizar ao máximo coarctando o método quantitativo, comparativo e outros que serão chamados de positivistas não pode desconsiderar apenas os manejos, apenas eles. Os “olhares” do senso comum com sua “aceitação” domesticada ou domesticável, sua não inquirição, e do outro lado a busca incessante pela exatidão e quantificação do senso científico parecem jamais se quietar, compor ou se mimetizar, se é que a expressão pode aí. De toda sorte, o 5º item do grande professor parece ser o mais difícil. Jean Menezes de Aguiar

Investigação na área médica



É fascinante a influência das “crenças” na ciência. Na medicina (cf. Investigação científica na área médica, Alvaro Oscar Campana e outros 5 autores), disciplina que filósofos da ciência discutem ser ciência ou prática, encontramos 6 momentos: 1) há 5 mil anos, o “reducionismo”, no qual as doenças eram causadas por deuses e buscavam-se as causas em níveis inferiores, físico ou químico; 2) nos séc. 16 e 17, o “vitalismo”, vendo-se o corpo como uma máquina, recebendo influência da alma; 3) no séc. 19, o “determinismo”, no qual para cada efeito havia uma causa determinante; 4) no séc. 20 o “holismo”, em que o ser vivo é um todo; 5) nos anos 1940 e 50 com a teoria dos sistemas, surge o “emergentismo”, em que as diversas partes do corpo interagem umas com as outras dando uma funcionalidade sistêmica; 6) por fim a “convergência de análises” em que se tenta harmonizar o reducionismo com o emergentismo, analisando simultaneamente o simples e o complexo.

A área médica é simplesmente fascinante, seja pela evolução da metodologia empregada, seja pelo aporte tecnológico praticamente insuperável ao lidar com o material humano. Os médicos são tão nobres... Jean Menezes de Aguiar.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Uma sociologia do escândalo



 Artigo publicado no Jornal O DIA SP em 31.5.2012

                Tudo bem que a imprensa precisa viver e vender jornal e revista. Mas a festa com dinheiro público não precisava ajudar tanto. Vive-se uma era do escândalo no Brasil. São crises espasmódicas, sem a menor previsão ser estancada a inércia do absurdo.  Parece que gestores públicos e autoridades se mancomunaram para produzir um escândalo a cada semana. Maquiavelicamente, poder-se-ia dizer que essa seria a intenção, visando a um abafamento sucessivo e interminável do bafafá imediatamente anterior. Mal começou um escândalo e um novo golpe já é anunciado. É o Brasil do escândalo inercial.

                A coisa é tão grotesca, ou geral, que o presidente da investigação é flagrado em delito e passa a ser ao mesmo tempo investigador e investigado. É a superafetação da causa e do motivo. É Goethe quando dá a síntese entre poder público e privado simbolizando a união de Mefistófeles, o pirata e predador privado, e Fausto, o administrador público, que dirige o trabalho como um todo.

                Mas os “manuais” de TGR, “teoria geral da roubalheira”, mostram que elas não são iguais. A roubalheira no setor público é diferente da que há no setor privado. Ambas têm em comum o número de cinco interessados, mas eles variam no tipo e na intensidade. Na roubalheira privada interagem a vítima, o agressor, a polícia, o MP e o judiciário. Já a roubalheira havida no setor público entrará na ciranda como vítima toda a sociedade. Com a legitimação da sociedade algumas coisas mudam, e novos atores e cenários são diferentes.

                Ainda, a comparação entre roubalheira privada e pública admite outras leituras. Na roubalheira privada, a indignação se restringe à vítima que é personalizada em alguém específico. Na pública há um sentimento indivisível legítimo, todos da sociedade, efetivamente, podem e devem se indignar. Na safadeza privada pensa-se mais na polícia, fala-se que “isso é caso de polícia”. Há aí uma estrutura psicanalítica voltada para a repressão, punição, mas o problema “é da vítima”. Na roubalheira pública há uma psicanálise da indignação, o sentimento começa com pasmo e parece se concentrar não na punição, mas na desonestidade que não deveria ser tão comum e ordinária com o gestor público.

                Numa terceira via, a situação ganha contornos de esbórnia moral e tende a explodir quando se mancomunam agentes públicos com privados. Por todos, o emblemático caso de Carlinhos Cachoeira que alugou políticos, órgãos e autoridades e vem resistindo a novos casos que parecem estar sendo criados para abafar a CPI-riacho.

                Nessa psicossociologia da roubalheira, parte considerável da sociedade se mostra ávida por informação. Precisamente aí, cabem ainda mais leituras.
               
                Será que é possível se perceber uma “sociologia do escândalo”, entendida como a notícia incessante de escândalos com dinheiro público? Talvez sim. Se com a Constituição da República de 1988 garantindo a liberdade de imprensa, a mídia passou somente a “revelar” as falcatruas do setor público, não se vive nada novo. Nesta primeira hipótese tem-se a possibilidade, pelo fim da mordaça, de se informar ao público o que apenas existe. Por aqui, ainda, tudo sempre existiu, e o novo é que se passou a informar e discutir.

                Mas se, coincidentemente, com todas as garantias constitucionais e a redemocratização muitos gestores públicos aumentaram nitidamente os assaltos aos cofres, sabendo-se de uma nítida redução da ética na sociedade como um todo, aí sim, está-se diante de algo novo. Ao que parece, nas últimas décadas a coisa da roubalheira descarou irremediavelmente, em quantidade e qualidade. E ao lado da roubalheira, deu-se a construção de novas lógicas, algumas perversas, outras inconcebíveis. Uma delas, por exemplo, é a de que alguns salários públicos precisam ser vultosíssimos, “para que o funcionário não seja corrompido”. Só rindo. Por essa lógica pode entrar bandido, mas o salário “consertará” sua personalidade.

                Talvez na atualidade, dessa tal lógica só tenham sobrado os salários altíssimos. Ninguém mais em sã consciência consegue sustentar a teoria velhaca de que salário alto num concurso gera honestidade ou impede roubalheira. Isso que já se repetiu muito caiu por terra exatamente com sedimentadíssimas autoridades em seus inatingíveis gabinetes super oficiais em final de carreira, ou início de cova. O mau exemplo veio, historicamente, de cima. E funcionou certinho como ética pedagógica para novatos que não fizeram pouco caso da TGR.

                A impressão é que a roubalheira se organizou. Outra impressão é que os órgãos apuradores, correcionais, fiscalizadores do setor público só agem quando a mídia os oprime, com manchetes. Aí no dia seguinte “será aberta uma sindicância rigorosa para apurar o caso” que, invariavelmente não apura nada. Se todos, por exemplo, recebem “verba indenizatória” (VI) como um segundo salário, que é um descarado “por fora” oficial, quem vai reclamar disso? O pagador? O fiscal? O diretor? O auditor? O bagrinho? Mas todos recebem... Quem também vai querer discutir a “natureza jurídica” dessas VIs?

                O problema ético da Vi, e esse é apenas um exemplo isolado, é que sua imoralidade se espraia e força uma percepção mancomunada de quadrilha entre todo um segmento, até originariamente inocente. Ninguém revela que ganha, ninguém conta para ninguém. E “se recomenda” que a informação fique “reservada”. Por que tanta resistência agora com a divulgação dos salários que são pú-bli-cos?

                Vão acabar criando uma “lógica” totalmente safada de que salário público é protegido por “intimidade”. Só rindo-2. Esses exemplos dão um tom ético dos piores num sistema jurídico. Fica difícil saber se qualquer um que recebe um “por fora” oficial, mensal e regular pode reclamar de dedo em riste de um Cachoeira. Admita-se a força do esgarçamento do exemplo, mas para a pureza ética não há muita diferença. Forma-se assim uma endoética em alguns setores públicos onde o “conseguir algum” passa a ser a regra, inclusive e se possível, sob a forma de pagamento regular e ordinário com um desses nomes sem-vergonháticos: verba indenizatória, remuneratória, diligenciatória etc.

                A crítica não pega, por exemplo e obviedade, a querida professora municipal, de Aguiarnópolis, interior do Tocantins, com cruel salário de 700 reais por mês, que, com certeza, é socialmente mais digna e importante que muita “autoridade”. Vê-se que não se tratam de riachinhos, mas de mares, rios caudalosos, grandes lagos e imensas “quedas d’água”. E como o rio não cessa de correr, por que os escândalos haveriam de parar? Reage sociedade. Jean Menezes de Aguiar.