quarta-feira, 15 de maio de 2013

Quem tem medo da ironia?





                                                       Jean Menezes de Aguiar
 
Artigo publicado no Jornal O DIA SP, semana de 16.5.2013

                        Três passagens. A primeira, o filósofo Charles Baudelaire, referindo-se a um magistrado francês: “Um homem muito famoso que também era um grande imbecil, coisas que, ao que parece, combinam muito bem entre si.” (O poema do haxixe, p. 25). A segunda do escritor Isaac Asimov: “As únicas coisas capazes de agradar de 25 a 50 milhões de pessoas são aquelas que evitam, cautelosamente, a menor possibilidade de ofensa. Resulta daí uma papa insossa, não porque ela agrade, mas porque não corre o risco de desagradar.” (Antologia, 1, p. 199). A terceira, do pensador Darcy Ribeiro: “A escola brasileira é a escola da mentira: o professor finge que ensina, e o aluno finque que aprende.” (Somos todos culpados, Eric Nepomuceno, p. 125).

                Quem é irônico aí? Quem é exato e preciso? Quem é absurdo? Quem é “desrespeitoso”? Dê as frases a pessoas intelectualmente diversas e terá respostas díspares. Conservadores e autoritários, se não souberem se tratar de pessoas geniais, trarão seus preconceitos e destilarão veneno, dizendo-se “indignados” ou alegando que há aí o tal do “desrespeito”. Numa outra ponta, intelectuais e “descolados” poderão sorrir com uma expressão de quem acaba de provar um quitute maravilhoso, e querer saber mais sobre as citações.

Um dos grandes problemas do discurso, não é como ele é fabricado por seu proprietário, muitas vezes com ótimas intenções e sinceridade. Mas como ele é recebido pelo interlocutor, muitas vezes encharcado de mediocridade e preconceito. Aí não há quem se salve.

                Ironia costuma ser confundida com desrespeito, ofensa ou até agressão. Pessoas “simples” têm direito de confundir qualquer conceito. Mas em época de politicamente correto (“chatissimamente correto”, conforme o filósofo Luiz Felipe Pondé), a ironia que não é jamais um subproduto da burrice, em alguns casos é uma arte fina, se transformou, para chatos em posição de sentido, um perigo, uma ameaça, algo a ser banido das relações.

Na Wikipédia se lê: “A ironia é um instrumento de literatura ou de retórica que consiste em dizer o contrário daquilo que se pensa, deixando entender uma distância intencional entre aquilo que dizemos e aquilo que realmente pensamos. Na Literatura, a ironia é a arte de zombar de alguém ou de alguma coisa, com vista a obter uma reação do leitor, ouvinte ou interlocutor.” O problema já começa com o verbo que se tornou um verdadeiro tabu nesse mundo do bullying mental: “zombar”.

Há pessoas que não aguentam brincadeiras. Ainda que “numa boa”, sem ódios e rancores. Irritam-se ou se admoestam. Veem-se “desrespeitadas”. Estas costumam agir como fiscais públicas da molecagem mental saudável, a ironia. Em uma sociedade cada vez mais formalista e autoritária o patrulhamento da brincadeira ou da ironia se tornou uma neurose.

Ironiza-se um objeto de análise, uma teoria, um conceito, uma sociedade, e não apenas alguém especificamente. Mas mesmo assim, sempre há um chato de plantão para se dizer “ofendido”. É o “bater no peito” e querer puxar para si, de forma ilegítima, um sentimento alheio.

O problema da ironia não está nela em si. Mas na assunção sensível de quem “quer se sentir” ironizado. Ou pior. Fala-se – e prova-se –, como Baudelaire, que alguém é “imbecil”. Pronto, o problema já deixou de ser uma eventual ironia ou mesmo a imbecilidade existente. Mas o “falar”, e mais, condena-se quem “usou” a palavra “imbecil”. O genial Ernest Hemingway já disparava: “Você tem que ser irônico desde a hora em que sai da cama.”

Deve-se saber se a ironia é sobre um “valor” de alguém, por exemplo seu time de futebol, ou se é propriamente sobre o outro, a pessoa em si. Por exemplo, ironizar “o time” de futebol de alguém pode não ser, perfeitamente, ironizar “esse alguém”. Mas todo mundo sabe que ironizar time de futebol “pode”, não dá “problema”. No máximo ouve-se de volta uma brincadeira. Fora os fanáticos, resolveu-se que brincar com o time dos outros “pode”. Já com a fé, religião, algum deus, mito ou crença que a pessoa tenha, a brincadeira parece ser proibida.

Já discuti o tema da ironia sob outras óticas, aqui na Coluna. No meu Blog podem ser vistas as matérias que foram publicadas, “Ofendíveis” e “Falar em tese no Facebook é tabu?”. Mas a vala é sempre a mesma. Há quem “queira” confundir ironia com desrespeito, arrogância e até agressividade. Tudo bem que o confuso confunda tudo. Mas a sociedade brasileira parece caminhar a passos largos para não tolerar mais brincadeiras e ironias, o que é uma pena mental. Depois que a intolerância virou moda, está difícil brincar.

                O problema não para aí. Pessoas são afastadas de rodas e grupos por serem irônicas. É claro que um irônico qualquer diria, entre gargalhadas:  “– bem feito, quem mandou se meter com imbecis?”. Tudo bem, mas há situações em que até um mínimo de jocosidade “agride” a esses que querem se magoar.

                A ironia não é um subproduto da burrice, da baixeza, da vileza ou mesmo da agressão. Somente pessoas medianamente inteligentes, para falar o mínimo, conseguem ser irônicas. Talvez Voltaire, o grande filósofo, tenha sido o irônico por excelência, ante os selvagens de uma França então burrificada que o prendeu por duas vezes e gerou sua fuga do país.

                Do mesmo modo que há diferenças entre piada e comédia; entre bagunça e humor; há diferenças entre ofensa e ironia. A ofensa talvez nem raramente se justifique. A ironia pode ter inúmeras valias, pode ser sutil, conceito tão difícil que alguns filósofos negam existir, pois que se percebido perdeu a sutileza. Pode ser aliada a uma graça verdadeira que descontraia o ambiente. Pode ser totalmente ácida e nevrálgica como algo mereça.

                A ironia entre amigos e pessoas que se sabem de bem jamais deveria ser tachada como algo ruim ou nefasto. Ela é apenas uma ironia e a pessoa irônica tem que aceitar o troco. O problema parece estar em mentes e corações que querem vê-la como algo negativo. Para esses, nem suco de laranja lima resolve. Viva o limão e paz nos corações. Jean Menezes de Aguiar.