sábado, 1 de outubro de 2011

O casal

Em 14.8.83 Lemaire foi entrevistado pelo Le Monde. Este psiquiatra, professor de psicologia na Universidade de Paris-VI autor de O casal, tem idéias densas sobre essa simbiose de gente a dois. Uma primeira que aparece na entrevista é certamente um dístico: “Num casal, quanto mais de se exige do parceiro mais se corre o risco de se sentir invadido por ele.” É interessante e chama a atenção como os teóricos “organizam” o distanciamento da invasão psicanalítica do casal praticamente estigmatizando-a, em franca oposição com uma carência mundana bastante difundida de se permitir – na verdade se querer – a invasão, a rigor, efetivamente procurá-la. 


Essa distância entre a “organização” da invasão como algo negativo, e o desejo dela como subproduto de uma busca pelo parceiro ideal é uma disjunção que precisa ser analisada. Lemaire diz que atualmente as pessoas esperam muito do casal e da família, uma necessidade sem precedente. E liga isso à intolerância de nosso tempo e ao fracasso do próprio conceito de casal, tantos divórcios etc. Mas o paradoxal é que mesmo com o conhecimento acerca da invasão que o casal gera e o esfacelamento do conceito ante a tal vida moderna, o casal continua mais necessário do que nunca.


E será no casal que haverá o maior reconhecimento pessoal, projetado no outro-imediato, que é o outro-doméstico, o outro-de-casa. Quem reconhecerá melhor a um homem comum e defeituoso que sua parceira e vice-versa? Essa auto-realimentação é sobrevivencial para o casal e mantenedora da própria pessoalidade isoladamente considerada, ainda que Lemaire diga que “O casal está vivo, o casal morde”, e morde mesmo e deve morder num uníssono de força legitimante, propositiva e sedimentadora. 


O casal passa a ser um todo sistêmico e visível pela sociedade. Essa ostentação é interessante, a apropriação pública do outro. O outro é meu e você não tem acesso, me pertence e eu posso usá-lo. Aí veem-se códigos de uso. É-se legitimado a imaginar os usos que os casais fazem entre si, mas nenhum deles será infame, porque esse uso é aceito e regulado. Eu uso a minha parceira e ela em circularidade me tem em uso.  E a sociedade tão envergonhada e promíscua em falsos pudores não se envergonha de publicizar o uso, principalmente o sexual. 


Todos sabem que o casal se come mutuamente, inclusive os casais caretas e “respeitáveis”. Gemem, gozam, suam e morrem de prazer. E esse uso é sabido. Os filhos também sabem que seus pais têm o uso e fazem uso desse uso e não apõem promiscuidade a isso, mas uma concordância tácita irrefletida e muda. Casais saem à rua imediatamente após o uso recíproco, suados ainda e despenteados e encontram no elevador ou no condomínio com um vizinho e não experimentam constrangimento, porque esse uso é igualizado pelo próprio vizinho. Em certas rodas é o uso que se torna objeto de conversação, estendendo-se detalhes “possíveis” dele, isso com a variação da intimidade e nível de transgressão dos utentes do discurso do uso. 


Mas nem todo agrupamento de dois consubstancia um casal. Vivemos uma nova era de novos casais e talvez tenhamos uma outra ainda com a pluralidade numérica do casal vindo por aí. A tipologia qualitativa do casal já foi afetada, com a admissão de identidade de sexos. A quantitativa ainda não. Cairá a monogamia intercasal no sentido de uma família se constituir a três? Sem se invocar futurologia (ela é chata) talvez essa seja a nova conquista da sociedade pós-gay (que já começa a se tornar cafona de tão panfletária que é). 


Mas o certo é que o casal é bom, não tem coisa melhor. Há amálgamas nele que os une e há dilacerações que os inviabilizam ou há as que simplesmente afastam seus conviventes. O casal precisa distinguir o que há em seu interior, espírito e aura de casal e avaliar a dificuldade de atualmente se constituir um casal verdadeiro. O consumismo atual de não se querer mais o casal em nome de uma felicidade experimental e instantânea, emparedada no banheiro da boate para a satisfação-ali-mesmo, em pé – cena que se vê reproduzida em inúmeros filmes –, denota nada mais que uma deficiência de avaliação na pujança e na possibilidade do casal.


O casal transcende a família e a própria morte. Perdura perene e olímpico, quando há-se em casal efetivamente, quando o seu bastar-se faz parte de sua concepção ontológica. O casal não saiu de moda mas não está conseguindo obter vantagens de uma sociedade que pós-teoriza, pós-conceitua, para somente neoaproveitar. O neoaproveitamento [primário, force-se] da sociedade é que está dando motivos a estudiosos sociais e humanistas como Lemaire para estudos assim. O retorno não está impossível, mas cada vez mais se sectariza em núcleos ortodoxos de constituição de núcleos de casais que descobrem a beleza de se viver o casal, fehado em si, um “para-si” [do casal!] que Sartre podia ter teorizado quando estudou o “ser-em-si”, ou uma efetiva selbstständigkeit (autossuficiência dos alemães). Aí abrem-se questões interessantes. O ser-em-si de Sartre é, como ele diz, um maciço, não tem segredo e não possui um dentro que se oponha a um fora. Mas o “para-si” do casal não pode ser estudado como compreensão pré-ontológica de Heidegger, porque o casal é uma criação e não uma existência eclodida como o ser. 


Essa criação é que deve ser mimada, cuidada e alimentada como um bebê, não pode ser descuidada como o ser, como a pessoa se permite descuidar. E aqui, no casal, ao contrário do “ser-em-si”, não se há em maciço e há contrários endógenos e internos, em tensão que precisam de constante atenção de quem compõe o casal. Mas o casal resiste a tudo, é gregário e sócio. E o casal, só ele, permite dormir em conchinha. E dormir em conchinha não é superável por qualquer teorização ou pensamento. Simplesmente não é. Jean Menezes de Aguiar