quinta-feira, 20 de junho de 2013

Violência e futuro nas manifestações

                                                                      Jean Menezes de Aguiar

A questão da violência por parte de vândalos integrantes da sociedade é um outro capítulo. Não há duas sociedades, uma de ordeiros e uma de agressivos. Todos pertencem à mesma sociedade. Daqui a pouco começará uma desconfiança sobre o futuro das manifestações. Se ela ultrapassar o ápice e começar a cair pode representar um desastre histórico gravíssimo para o país no sentido de a sociedade não acreditar mais na sociedade, em termos de manifestações, reivindicações e protestos. Apenas uma pauta deveria existir, não de matéria, mas de tempo. Vamos protestar durante todo o ano de 2013, ou até o final do mês. Isso pode representar estoque de munição social. Políticos e “autoridades” estão esperando a poeira baixar. Ela não pode baixar. Contra este cinismo da omissão das “autoridades” regado a uísque 18 anos nos “palácios” virão reações mais violentas e talvez em maior número.

Os protestos atuais não são as velhas “correntes” de dinheiro que inflamaram e depois se percebeu que tudo era um logro. Não há logro no conteúdo das reivindicações, há justiça aos nacos traduzida pela revolta popular, pelo repúdio e asco a políticos, “autoridades” e partidos políticos. Partidos começam a querer se infiltrar a força nos movimentos. Será um estupro. Este espaço não lhes pertence. Todos os partidos aí são espúrios e mal-vindos. Políticos são safados (quem contesta?), e suas “juventudes partidárias” ideologicamente lobotomizadas – os tais meninos e meninas com bandeiras do Pt, Psdb, Pstu, Psol, Dem, Psc e outras coisas péssimas iguais – que não representam mais nada a não ser os próprios interesses financeiros, também são, quando não são extremamente violentas.

Se “revolta” era coisa de baderneiros, o conceito se renova com 99% da população em estado pacífico. Mas ainda é pouco. Ideólogos dos movimentos precisam conversar e dar um mínimo rumo a esta força popular. Todos dependemos dela para um país melhor. Parabéns a todos. Se perdermos esta chance, pode não haver outra. O cansaço pode tomar conta por uma geração, como se deu no pós-Collor, aquela única vergonha nacional a sofrer impedimento. Não podemos deixar isso parar. Ou morrer.


Brasil ame-o e mude-o.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Acorda governo

                                                                         Jean Menezes de Aguiar

 Artigo publicado nos jornais O Dia SP e O Anápolis, GO - semana de 20.6.13


                Como “ler” o povo? Esta equação nunca teve resposta exata na ciência, até porque as ciências da área não são exatas. Observadores qualificados vêm tateando interpretações plausíveis. Buscam respostas para os protestos no país. O protesto está mais que vivo, parecendo se replicar. O assunto não é mais o aumento de preço dos ônibus. Reacionários, conservadores e autoritários de plantão dirão, em sanha “ordeira” que o movimento é baderna. Não é. O fato é que o povo parece ter acordado. Se não o povo, grande parte dele. A ponto de mobilizar a imprensa nacional e mundial.

O protesto não foi um momento; está sendo um processo. Coisas bem diferentes. É como se a sociedade descobrisse que é mais forte que a polícia, aí o primeiro degrau. A coisa do “povo unido” foi testada. Não pela primeira vez, pouco importa, mas o sabor da vitória está crescendo. De novo, há o ingrediente da internet que torna fácil reunir a “galera”. Se os manifestantes “descobrirem” que são também mais forte que o Estado, podem querer “tomá-lo”. O nome disso? Um velho nome em desuso: “revolução”. Claro que nada é tão simples assim. Mas o país está sacudido e governantes perderam o sono. Muito bom isso.

                O filósofo com a cabeça na guilhotina, na França, dispara: “Ó carrasco, de onde vem o seu poder sobre mim, se todo poder emana do povo?” O caso é que no Brasil, os governos e suas “autoridades”, há décadas, são carrascos do povo. Vitalícios ou perpétuos. Remunerados como reis num país historicamente humilde. Com evolução patrimonial pessoal jamais fiscalizada. Frequentadores de coquetéis nababescos em “palácios”. Com meses, no plural, de férias legais (e imorais) por ano. Com poder de aumentar os próprios salários. E muita, muita impunidade. São também filhos e netos beneficiados, herdando e sucedendo cargos e postos. Ou pelo voto ou por concursos arranjados.

                Roberto Romano, professor de ética da Unicamp, ensina que o Brasil vive uma “autocracia”, um modelo imposto pelo Estado e seus agentes à sociedade. Mas a falência do modelo mostra os caninos, com cáries. A questão passa exatamente por isso: de um lado “autoridades” inatingíveis e chafurdando na corrupção, do outro o “mero cidadão”. Não houve diálogo na imposição desse desenho autocrático.

                Se a sociedade “perceber” o custo social desse Estado desonesto, somado ao custo social das “escolhas” que ele faz, por exemplo com o gasto de bilhões de reais na Copa, tudo comparado à míngua em atendimento público, pode, sim, haver rompimentos sistêmicos graves.

                Talvez os protestos tenham uma resposta paradoxalmente complexa e simples. A náusea social. O não aguentar mais do povo brasileiro para com o modelo institucionalmente corrupto do Estado. Fica clara a erupção de uma revolta do povo sofrido há décadas que percebe que poderia ter condições sociais infinitamente melhores. Saúde, transporte, educação, segurança e felicidade social poderiam pertencer ordinariamente aos lares brasileiros. Não há isso por um problema única e exclusivamente de gestão. Ou melhor, má gestão, aliada à endêmica e antropológica corrupção oficial. A desculpa da falta de dinheiro não convence mais ninguém.

                Com a internet o mundo ficou menor. Sabe-se aqui que na Noruega há bicicletas para todo mundo. Sabe-se aqui que na França os pontos de ônibus têm hora e minuto de chegada do coletivo, e ele chega. Sabe-se aqui que deputados em diversos países têm um sala-e-dois-quartos para viver. Se não quiser, dane-se. Ou chore. Se as comparações não servem como um modelo para “imitação”, servem como inspiração. Se não são esses modelos precisamente, há inúmeros outros.

                Quanto à atuação da polícia nos protestos, é um caso à parte. A autonomia da polícia, percebeu-se, é zero. Ou ela atende a uma ordem direta de um secretário de segurança autoritário de baixar o sarrafo, como cumpre cegamente e baixou; ou atende a uma ordem de um governador também autoritário que percebeu a besteira na gestão e determina, então, uma leniência promíscua, e ela também cumpre. Vira a polícia chuchu, insossa e omissa, além de errada. Mais uma vez a polícia foi usada, em SP na primeira manifestação, como o ex-delegado carioca Hélio Luz se referiu no maravilhoso documentário Notícias de uma guerra particular: um mero e típico instrumento de repressão a favor das elites.

                O fato de não haver uma direção nem uma pauta definida nos protestos foi percebida por não poucos observadores como uma deficiência. Mas exatamente isso pode ser o que de mais legítimo há. Considere-se a frustração que foi o último grande sonho nacional, a Constituição de 1988, em termos de efetivar o tal “país do futuro” como país do presente. Some-se isso à corrupção e à impunidade. O resultado pode ter começado com estes protestos. Nas ruas. Esta semana.

                Poderá ser fogo de palha? Poderá. Já se cantou que bastava um jogo de domingo no Maracanã para que o povo esquecesse a ditadura e as dificuldades. Mas o certo é que muita coisa mudou. Aí está a esperança.

                Pelo lado do Estado, viram-se “autoridades” visivelmente contrariadas, porque em xeque com sua gestão desmoralizada, experimentando um cinismo prêt-à-porter. Tentando demonstrar “gostar” das manifestações. Dilma, num segundo momento orientada por Lula, ensaiou capitalizar sobre a situação. O Psdb profetizou que quem fizer isso sofrerá um sinistro “preço de retorno”. Todos quiseram tirar casquinha. O fato é que políticos não sabem viver sem pensar nos próprios umbigos e currais eleitorais. Não fazem pelo país e pela sociedade. A reeleição é um crack eleitoral. Até Feliciano aproveitou e aprovou sua “cura gay” na comissão de direitos humanos.

                Pelo lado dos manifestantes, pacíficos e poderosos, a nota é 9,9. Parece não haver outra. Vem sendo tudo espetacular. Pelo menos no plano numérico. Se vinte imbecis, vagabundos, ou criminosos, em uma passeata de 200 mil manifestantes têm força física para incendiar automóveis e quebrar portões, atraindo uma imprensa que, percebe-se, adora um fogaréu na noite, é parcela ínfima. Isso borra o movimento e exporta essas imagens para o mundo. Mas o saldo no país é inegavelmente positivo. Nem apenas porque diversas prefeituras e governos já começaram a baixar tarifas, de pressinha. Mas a própria conscientização democrática de se manifestar.

                Há um hiato abissal entre o legítimo anseio da população, o desejo social, e a obrigação de atendimento público pelo Estado. Vive-se um neocoronelismo urbano atualmente mais agudizado pelo recrudescimento de um “estamento burocrático”, nas palavras de Raymundo Faoro. O Estado, historicamente, só cuidou bem “dos seus”. Afora a raia miúda de funcionários públicos, invariavelmente também explorada, os escalões de mando e gestão sempre zombaram de quem lhes paga, o povo.


Praticamente toda a sociedade parece ter desenvolvido uma ojeriza uniforme por políticos, e não só estes. Nada que ver com anarquia. Os protestos podem mostrar que é o povo que manda. Tomara que seja assim. Jean Menezes de Aguiar.