A neoclandestinidade
No meu artigo semanal de jornal de 19.5.2011, citei Einstein sobre a importância de falarmos coisas profundas: “Vivemos numa época de tamanha insegurança externa e interna, e de tamanha carência de objetivos firmes, que a simples confissão de nossas convicções pode ser importante, mesmo que essas convicções, como todo julgamento de valor, não possam ser provadas por deduções lógicas”. Nesses tempos pasteurizados de globalização e imbecis de politicamente correto é necessário ouvir essas figuras insuspeitas para que olhemos os nossos tempos com espírito crítico, ainda que isso possa “adiantar” nada, eu sei; ainda que um texto desses aqui possa adiantar nada, eu sei; ou servir, isso sim, de uma forma canalhinha para esconder erudição de quem escreve, também não descarto esse viés. Mas, quebrando-se então essa tal erudição só há um algo a dizer, lento, poético e soberano: foda-se. Parece que ninguém mais quer falar de suas convicções mais profundas, apenas das perfunctórias, indeléveis, palatáveis, digeríveis e bem etéreas. Não diria fúteis, mas é claro que chega a isso. É um sinal dos tempos, não se falar profundamente? Talvez não, ou talvez nem isso. Intelectuais e teóricos sempre supuseram isso em seus textos. Voltaire foi preso duas vezes por essa insistência, cunhou a célebre frase “O segredo de aborrecer é falar tudo” e depois precisou fugir do próprio país. Algumas situações históricas beiraram limites paradoxais e cruciantes, como a descrita por Sartre: “Jamais fomos mais livres do que sob a Ocupação alemã” (La Républic du Silence), fazendo referência a que ali perdeu-se tudo, todos os direitos e a cada vez que o veneno nazista descia ao pensamento, cada pensamento justo era uma conquista. Pois é, atualmente não queremos mais conquistas, nem escaladas, nem desafios. Com o mundo lânguido e lúdico, com o ensino falsificado vendido na TV como “produto” e a educação obedecendo exclusivamente à ética do eu-quero-me-dar-bem-e-você-que-se-foda, qualquer um mais “profundo” (parece palavrão rábico, anal...) experimentará uma neoclandestinidade.
Esta neoclandestinidade pode ser identificada às avessas, não mais pelo cerceamento físico, patrulhado ou censurado da produção intelectual ou artística, mas pela tragédia da inexistência de interlocutor. É a sociologia do não, da não existência, não de uma “defeituosa” e, por isso, espetacularmente estudável, mas de uma nihilizada, sequer abortada, uma desmaiêutica, imparturizável. Assim, perguntarão o violonista virtuose ou um estudioso profissional: Com quem converso? Para quem produzo? Há no Brasil, nas letras, na cultura, nas artes, hoje, um Zeitgeist (espírito de tempo) completamente outro do vivido noutros lugares. Imitamos mal o conceito de auto-ajuda na literatura e tudo ficou assim. Quando Padre Marcelo é eleito o melhor cantor do ano (porra, isso é sacanagem!) por uma plateia sertanejo-jeans-diesel que parece viver em trenzinhos sexuais infinitos, temos a certeza de que a neoclandestinidade está vitimando intelectuais, artistas verdadeiros, pensadores, cientistas e gênios que não têm espaço para respirar. Até se “referir” a essas categorias é complicado, porque se é taxado de arrogante, pedante, ou sabe-se lá que merda mais os complexados e incompetentes inventam para nivelar tudo por baixo. Aí algum filho da puta de plantão, politicamente correto e com um discurso esgarçado para fazer média, nivelando de novo por baixo, em espelho à própria incompetência dirá, patrulhando: “– Mas não existe isso de artista verdadeiro! Todo artista é artista!” E foi em cima desse discurso engodado com peixe podre num pós-modernismo baratinho que simplesmente desapareceram todos os grandes ícones da MPB e uma horda desqualificada de vaidosos com cabelo penteado para frente e falsamente desarrumados, invadiu a TV. Dê-se um violão a um Milton Nascimento ou um piano a um Ivan Lins e ouça o que sai dali; aí depois dê-se um instrumento qualquer a um desses sujeitos por aí parecendo cantar em prisão de ventre, fazendo força para fingir que interpreta, e quem tiver competência que compare a qualidade musical. Isso mesmo, compare. Essa palavra odiosa e maléfica, proibida e patrulhada que alguns filósofos ousam querem proscrever: comparação. Qualquer músico de saída de metrô em Nova Iorque (que eu particularmente não conheço, mas colegas meus músicos brasileiros que lá trabalharam relatam entusiasmados), é melhor 20 vezes do que essas Justin Bibas brasileiras que enchem as rádios e as TVs. Na ciência, a mesma coisa. Pulula a pseudo-ciência como jamais foi na história da ciência. Charlatães, safados, pregadores, endinheirados e toda uma quadrilha desconexa de adivinhadores cósmicos, gente já referida por Carl Sagan (O mundo assombrado pelos demônios) que parece que veio toda para o Brasil. Nossos pesquisadores praticamente pararam de conversar com a sociedade brasileira. Ou estão em projetos próprios sobrevivenciais de pesquisa para poder trabalhar ou voltam-se exclusivamente para o estrangeiro. O nosso binômio C&T (Ciência & Tecnologia) de ponta não tem interlocutores sociais, não queremos o estudo sério, só o estudo-produto, aquele ao qual a repetência é “fora de moda” e aquele em que quem “avalia” o Mestre é o aluno, não mais as bancas de iniciados, cientistas e notáveis. Os exemplos se amontoam e o risco da repetição se aproxima.
Até nossa violência é pobre culturalmente. Sartre e Camus tiveram como mote central de suas existências intelectuais a violência. Aquele, tratando-a como uma prova do tornar-se real. Este, Camus, digladiando o quanto pôde contra sua existência, os danos que ela causa. Nós, brasileiros, temos Datena com salário de 500 mil reais por mês. O que diria Sartre disso? Perdoe-se o meu questionamento infame e prostituto. Há-se esticar essa corda sim, ao máximo, e ver o quanto de nós embutidos pode haver ocultos aí, nessa trama, nesses fios. Por que queremos Datena e um ensino infantil lúdico e somente de brincadeira? Quem queremos alijar? Manter sob essa neoclandestinidade? Preciso me informar mais, sei muito pouco ainda sobre certas estruturas. Preciso visitar escolas infantis chamadas “de ponta” no Brasil para ver se há um ensino verdadeiro ou mentiroso. Não confio nas diretoras classudas e gostosonas, quarentonas e malhadésimas que nas férias veem-se em Nova Iorque anunciando suavemente a apenas um aluno (não precisa de mais) no Facebox que “coincidentemente” estão lá e que tudo é “simpatiquinho” e que “adoooram” NY. NY deve ser adorável sim, não adiro simplistamente às críticas baudrillardianas sobre o “paraíso mítico da simulação” que são os Estados Unidos. Eles são, mas noutro ponto da investigação, um bastante teorético e isso não está em pauta aqui. Mas preciso conhecer as academias de música de lá, as de dança, os teatros, as universidades e alguns guetos e submundos. Descircularizo o discurso, eu sei e assumo, e se preciso torno-o mimético, mas certamente por defeito e preguiça na manutenção de um fio condutor lógico. Assumo desavergonhadamente. Já cansei e esse texto-ensaio já chega ao fim. Subencerro com uma fala [audaciosa?] de Simone de Beauvoir sobre o movimento da Resistência, “Aquela falaciosa entidade”. Estudamos tanto quanto possível a Resistência, nos vieses praticamente antagônicos de Camus e Sartre, para encontrar uma Simone apta à “náusea” e lindamente apaixonada por Sartre a ponto de “comprometer” uma visão então imediata num vitorioso pós-Guerra e assinar falaciosidade à Resistência. Não me apedreje achando que reduzo Simone ao primarismo do amor, isso se lhe foi impossível, ainda que biógrafos refiram-se a ela em Sartre como sendo seu “amor transatlântico” (isso sim é poder!), mas assumo que essa vitória tola do amor, vagínica e carnal, “gozosa” como falava Darcy Ribeiro, é dos melhores da vida. Meu deus. E enquanto eles trepam, uma possível neoclandestinidade espera comportada e científica no sala, com licor e torradinhas. Enquanto no quarto se brinca de papai e mamãe, ou de primo e prima. E só assim se percebe que a vida tem salvação. Mas quando passa o efeito do suor e gozo e se volta à sala, a chata da neoclandestinidade está pacientemente a cobrar seu preço de solidão e azedume. Faz lembrar Kierkegaard: “Eu acabei de retornar de uma festa na qual eu era a vida e a alma; palavras espirituosas fluíam dos meus lábios, todos riam e me admiravam – mas fui embora – e a frustração seria tão pronunciada quanto a órbita da Terra [...] e eu desejei atirar em mim mesmo.” (Journals, p. 50-51). Aqui, fim. Jean Menezes de Aguiar.
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