Deus continua sendo um questionamento dos mais interessantes. Humanos de todos os cantos e povos sempre precisaram se apegar a uma figura que efetivamente nunca viram, mas essa sempre foi uma das essências da vida: o mito. Para muitos o próprio questionamento acerca de Deus já é uma heresia, ou um pecado. Mas pecado parece ser um conceito tão brega e intelectualmente tão rasteiro.Para a filosofia talvez seja algo teoricamente produtivo (mas o que não é para ela?), como foram as guerras, os exílios, as fugas dos campos de concentração. Como são as dolorosas e infindáveis traições amorosas que fazem digladiar a mente bêbada e espasmódica com o coração estilhaçado e desejoso do colapso, a então salvação doce e eterna.
Por outro lado, o conceito de Deus talvez seja para os filósofos um problema, no sentido de que muitas são as construções conceituais possíveis e efetivamente existentes sobre o objeto Deus e nenhuma possibilidade lógica instrumental agregável a cada uma dessas construções. O objeto abstrato existe, Deus, mas com total e obrigatória impossibilidade de logicizá-lo conceptivamente ou mesmo inferencialmente, em questões que pudessem refugir do abstrato imaginário. Não se concretiza experimentalmente Deus para um conceito utilitário. O necessário conceito encapsulado no abstrato imaginário não comum, mas ainda pior, particularizável, subjetivizável, faz com que Deus seja talvez o questionamento mais aberto – democrático – da filosofia, superando talvez a concepção do Ser, que, em primeira ou última análise admite a visão primária do concretismo carnal, humanizado num corpo físico que urina e defeca.
Para se tratar de Deus, talvez haja que se referir à filosofia crítica, que se baseia no Eu absoluto, e não numa filosofia dogmática, baseada no Objeto, ou no Não-eu. Na crítica, porque Deus tem que ser concebido com essa largueza por cada um dos pensadores. Talvez essa largueza seja o que Schelling ensina sobre a filosofia crítica, ser a liberdade o “alfa e o ômega de toda filosofia”. É com essa liberdade sobre o objeto (Deus) que os filósofos o conceituam abertamente. Aí a “crise” ou uma tragédia sobre um objeto aconteituável de forma minimamente unicista ou, em vez disso, conceituável infinitamente. Ainda, esta infinitude conceitual não guarda qualquer correlação com suposta infinitude deística, assim considerada por crentes ligados a uma religião ou não, numa forma de um Deus não apenas filosófico, mas existencialmente situado em algum lugar sagrado, paraíso, céu ou espaço geograficamente superior à vida terrena em gravidade, comandando ou se preocupando com a vida na Terra.
Um dos potencialmente infinitos conceitos filosóficos de Deus, motivou esse texto. Na obra Ensaio sobre o trágico, do húngaro Peter Szondi, p. 32, vê-se que o conceito de Deus (para alguns deus com d minúsculo) em Schelling é a “idealidade infinita que contém em si toda a realidade”. Por aí já se pode começar um desenho, talvez melhorado com a invocação de Spinoza, para quem Deus é uma “alma do Universo”, conceito aceito por Einstein, que nega expressamente existir “um Deus que se preocupe com as nossas necessidades pessoais”.
Agora, com esses 3 conceitos, idealidade, alma do universo e negação de uma pessoalidade ou santidade preocupativa como um síndico global parece que já se tem material para uma composição, quase que poética, ou carnavalesca do objeto. Uma primeira observação é a distância conceptiva de como as pessoas veem ou têm Deus e como os filósofos tratam dessa, por que não, doce figura. Pelo lado de uma lógica formal, talvez fosse melhor que as pessoas que se dizem inteligentes construíssem ideias de Deus menos comprometida com a imagem de um sujeito masculino, em algum lugar, sentado numa poltrona, observando o planeta, ou até o universo. Esse Deus negado por Einstein faz todo o sentido e é infinitamente mais inteligente do que essa representação boçal do Deus-procurador ou do Deus-síndico que muitos religiosos de plantão vendem comercialmente a milhares de incautos e pobres coitados que pagam dinheiro terreno para garantir um lugar na grande fazenda celeste.
Como é que um primata melhorado de nós pode ser tão arrogante a ponto de dizer que “conhece” de um Deus criatura e saber o que essa figura faz e pensa? Essa imagem de Deus síndico é bastante própria da sanha humana de querer “saber”. É um conhecer intangível, sem qualquer verificabilidade lógica, a não ser pelo viés do milagre. Aqui nem entra mais o lado comercial de igrejas, mas um pior: o da arrogância terrena de deter o conhecimento misterioso, como uma espécie de PhD do mito.
Não pode haver “respeito” por Deus, porque o respeito é uma forma farisaica de arrogância, já que pressupõe conhecimento e intimidade com o objeto. Mais, pressupõe potencialidade lesiva: respeito sob pena de ferir. Não se tem conhecimento e intimidade alguns a ponto de se precisar respeitar como a um parente, a um amigo, a um conhecido, como a “alguém”. E não se é dotado de potencialidade lesiva: Deus não é ferível por qualquer ser humano porque sua experimentabilidade é tão-somente uma inferência. É jactanciosa e pernóstica a construção de que se precisa respeitar Deus, sob pena de magoá-lo ou feri-lo, como se se soubesse dos seus sentimentos. Em ambos os casos e efeitos aí o farisaísmo baba, como qualquer construção da mente humana que não pode ser minimamente verificada, mas exigente maximamente de um crédito inexplicável.
É com essa arrogância engomada, aí já numa total atitude desfilosófica e um utilitarismo completamente financeiro e comercial que se criam frases como “Deus é fiel”. De onde pariram esse misto de lixo mental com essa vaidade cognoscitiva humanoide? Usam isso, de novo, como se “soubessem” de Deus. Por isso é muito melhor o Deus dos filósofos, muito mais honesto, muito mais verdadeiro porque mais humilde e “possível”. Não há aqui a vaidade desqualificada dos idiotas do querer saber de um Deus síndico, ao qual parta dele uma fidelidade “reconhecida” e “certificada” por um humano qualquer, que ousadia, como se pudesse partir a infidelidade. Há aqui um Deus que seja uma suposição de força, de absolutividade, de infinitude, de totalidade, de universalidade, porém conceitos essencialmente inumanos e amentais. Esse Deus dos pensadores, criado pela inteligência da suposição é confiável e até espetacularmente “apegável” e invocável em horas de necessidade. Só que este Deus não autoriza fundar igrejas lucrativas para pobres coitados rebanhosos, até porque seu conceito seria por demais complicado para um humano enganado por salafrários do planeta. Jean Menezes de Aguiar.