Foto: JMA
Na última semana viveu entre nós uma crise “publicada”.
Trata-se da proposta de emenda constitucional 33, da autoria do deputado pelo
Piauí, Nazareno Fonteles. Dizem, um sujeito sincero. Como o STF virou pop e o sonho do “Faustão - essa é a sua
vida” é fazer Joaquim Barbosa chorar ao vivo, todos puseram no colo o mesmo
lado da questão. Acharam a Pec 33 um insulto, um afronta, um risco à
democracia, um desrespeito ao Supremo. Nelson Rodrigues dizia ser burra toda unanimidade.
Desconfiar passou a ser dever cívico.
O que é uma crise? Num esforço conceitual, crise pode
ser compreendida como um problema sério, que evolui, relativamente a um fato
real e existente, que pode tomar proporções de difíceis consertos ou até soluções
impossíveis. Os componentes do conceito estão aí: um problema real e não
aparente; tendente a se agravar; com difícil administração de solução ou mesmo impossibilidade;
podendo chegar a consequências muito mais graves ainda.
O Estado brasileiro e suas “autoridades” devem ser os
mais pródigos do mundo com a imprensa. Criam escândalos semanais. Na época
militar o que era visível era a “impunidade”, um sintoma posterior ao evento
danoso. Agora antecipou-se o processo. Com a imprensa livre, vive-se o costume
da própria corrupção em-si. A junção desses males sociais destilou um
anestésico social ao sonho da tolinha revolução. O máximo que a criatura
lobotomizada faz é reclamar na fila do supermercado.
Quando a
crise não é real, nós próprios nos incumbimos de dar-lhe aparência. Precisamos
dela como uma droga social. E a imprensa, claro, contribui para a
“visibilidade” do monstro, verdadeiro ou virtual. Com a Pec 33, parece que foi
o que ocorreu.
A
Constituição da República cuida do “processo legislativo”, no artigo 59. Este
processo é responsável pela elaboração de leis e emendas à Constituição.
Qualquer tema social ou jurídico pode ser objeto do processo legislativo. J. J.
Gomes Canotilho, o mundialmente famoso constitucionalista português, é um dos
grandes estudiosos sobre “matéria constitucional”. O objeto da Pec 33 “era”
essencialmente constitucional. Nitidamente próprio de uma discussão congressual
sobre extensão e tipologia de independência dos Poderes. A revisão, pela Casa
do Povo, com um quórum elevadíssimo, de uma interpretação que no máximo 11
ministros do Supremo concluíssem. A reação foi quase jihadista.
Tudo bem
que se viva um Brasil com carência de heróis. Lula já se enrolou com a Polícia
Federal. Querem, agora, os 11 do Supremo deuses. Mas o processo legislativo tem
blindagem constitucional. Qualquer matéria pode ser discutida “dentro” do
Legislativo e, se votada, como se vive num Estado de Direito, há que ser
respeitada. Os juízes cumprem a lei que
o Legislativo elabora. A menos que a lei seja tecnicamente inconstitucional, o
que é totalmente diferente de ser incômoda, ruim, cerceadora, absurda,
esquisita ou não agradar a um grupo ou outro etc., todos devem cumpri-la.
A Constituição está acima do Estado e dos Poderes. A
cada Constituição nova, dá-se um Estado novo. Estado é um ente criado pela
Constituição. Isso precisa estar organizado para quem quer pensar o Estado. A
Carta regula como é o processo legislativo e ninguém pode querer alterá-lo. Assim,
há processos eleitoral, recursal processual e administrativo, tributário,
financeiro, legislativo, todos eles previstos na Constituição, explícita ou
implicitamente.
Por outro lado, é possível haver ação de mandado de
segurança, com ampla defesa, devido processo legal e sentença regular, relativamente
a um processo legislativo por violação regimental de passos e atos processuais
legislativos. O problema é que a Pec 33 cuidava, não ilegitimamente, de matéria
atinente ao Judiciário e a situação foi política e midiaticamente tensionada.
Não utilizaram um processo regular. O apedrejamento e a desmoralização públicos
à Pec surtiu o efeito. O paredão foi varrido para recebê-la. E ela já foi para
o lixo.
Nada está imune a um processo judicial regular, mas
não foi o que houve com a Pec. Há um precedente de patrulhamento. Tentou-se
“regular” a imprensa, há poucos anos, coisa que as Constituições Alemã,
Francesa e Italiana conhecem tranquilamente. A reação foi ácida e concertada.
Praticamente equiparou-se o pecado de regulação da imprensa no Brasil à morte
de Jesus. Foi ridicularizado quem tentou sequer abrir a discussão. O
patrulhamento funcionou. Voltou a funcionar agora com a Pec 33.
Mas será
que um controle popular como quis a Pec seria todo esse “afronta”? Haveria todo
esse “regresso” que adivinhadores do caos anunciam? Há uma linha tênue entre a
interpretação técnica da Constituição que, em termos decisórios, cabe ao
Supremo e em termos científicos cabe a qualquer jurista, mas em termos não
técnicos, sociais e populares pode, perfeitamente, ser dividida com a
sociedade. O nome disso? “Democracia”. Ou será que a sociedade tem que ser
“substituída” pelos 11 do STF para traçar seus destinos, cultura, hábitos e
esperanças? Estigmatizaram o processo legislativo no caso.
Os chefes
do Legislativos, políticos profissionais que são, correram para o não
enfrentamento. Juraram que a crise, por eles, acabou. Mas sabem que o tema
ficou no ar. E o STF pode estar mais em xeque ainda com seu ativismo judicial doméstico.
Nem se diga que a tese da “vingança” relativamente à Pec, por causa do
Mensalão, seria válida. Balela. A Pec era de 2011, anterior às condenações.
Se essa
moda pega, a imprensa vai “ajudar” a dizer o que é matéria constitucional,
abrindo crises e proibindo o Legislativo de trabalhar quando achar que algo
“não é bom”. A equação é exagerada. Mas tudo foi um exagero. Se já se viveu o
porre da democracia, talvez se esteja vivendo o porre da imprensa. Aliem-se
coisas detestáveis como o tal do politicamente correto, a intolerância, o
consumismo patológico, a ode por se reclamar de tudo e outras ondas sociais
brazucas.
Rui Barbosa
ensinava que “não existem palavras ociosas na Constituição”. Todo e qualquer
termo legal, constitucional, contratual precisa ser interpretado juridicamente.
Leigos têm certa dificuldade em “aceitar” isso. Acham que leem literalmente e
pronto. No caso da Pec 33, alguns se agarraram à palavra “independência” dos
poderes. Mas independência no caso, não é ausência de toque, comportamento
estanque radical. Os 3 Poderes praticam funções uns dos outros. Limites e
quantidades de outorgas constitucionais, desde que não sejam cláusula pétrea,
podem ser revistos. O problema é que tudo está virando lóbi e alguns são
bastante poderosos. Jean Menezes de Aguiar