sexta-feira, 3 de maio de 2013

STF x Congresso: a crise que nunca existiu

 

Foto: JMA
 
 Artigo publicado no Jornal O DIA SP - semana de 3.5.13

                Na última semana viveu entre nós uma crise “publicada”. Trata-se da proposta de emenda constitucional 33, da autoria do deputado pelo Piauí, Nazareno Fonteles. Dizem, um sujeito sincero. Como o STF virou pop e o sonho do “Faustão - essa é a sua vida” é fazer Joaquim Barbosa chorar ao vivo, todos puseram no colo o mesmo lado da questão. Acharam a Pec 33 um insulto, um afronta, um risco à democracia, um desrespeito ao Supremo. Nelson Rodrigues dizia ser burra toda unanimidade. Desconfiar passou a ser dever cívico.

                O que é uma crise? Num esforço conceitual, crise pode ser compreendida como um problema sério, que evolui, relativamente a um fato real e existente, que pode tomar proporções de difíceis consertos ou até soluções impossíveis. Os componentes do conceito estão aí: um problema real e não aparente; tendente a se agravar; com difícil administração de solução ou mesmo impossibilidade; podendo chegar a consequências muito mais graves ainda.

                O Estado brasileiro e suas “autoridades” devem ser os mais pródigos do mundo com a imprensa. Criam escândalos semanais. Na época militar o que era visível era a “impunidade”, um sintoma posterior ao evento danoso. Agora antecipou-se o processo. Com a imprensa livre, vive-se o costume da própria corrupção em-si. A junção desses males sociais destilou um anestésico social ao sonho da tolinha revolução. O máximo que a criatura lobotomizada faz é reclamar na fila do supermercado.

Quando a crise não é real, nós próprios nos incumbimos de dar-lhe aparência. Precisamos dela como uma droga social. E a imprensa, claro, contribui para a “visibilidade” do monstro, verdadeiro ou virtual. Com a Pec 33, parece que foi o que ocorreu.

A Constituição da República cuida do “processo legislativo”, no artigo 59. Este processo é responsável pela elaboração de leis e emendas à Constituição. Qualquer tema social ou jurídico pode ser objeto do processo legislativo. J. J. Gomes Canotilho, o mundialmente famoso constitucionalista português, é um dos grandes estudiosos sobre “matéria constitucional”. O objeto da Pec 33 “era” essencialmente constitucional. Nitidamente próprio de uma discussão congressual sobre extensão e tipologia de independência dos Poderes. A revisão, pela Casa do Povo, com um quórum elevadíssimo, de uma interpretação que no máximo 11 ministros do Supremo concluíssem. A reação foi quase jihadista.

Tudo bem que se viva um Brasil com carência de heróis. Lula já se enrolou com a Polícia Federal. Querem, agora, os 11 do Supremo deuses. Mas o processo legislativo tem blindagem constitucional. Qualquer matéria pode ser discutida “dentro” do Legislativo e, se votada, como se vive num Estado de Direito, há que ser respeitada.  Os juízes cumprem a lei que o Legislativo elabora. A menos que a lei seja tecnicamente inconstitucional, o que é totalmente diferente de ser incômoda, ruim, cerceadora, absurda, esquisita ou não agradar a um grupo ou outro etc., todos devem cumpri-la.

                A Constituição está acima do Estado e dos Poderes. A cada Constituição nova, dá-se um Estado novo. Estado é um ente criado pela Constituição. Isso precisa estar organizado para quem quer pensar o Estado. A Carta regula como é o processo legislativo e ninguém pode querer alterá-lo. Assim, há processos eleitoral, recursal processual e administrativo, tributário, financeiro, legislativo, todos eles previstos na Constituição, explícita ou implicitamente.

                Por outro lado, é possível haver ação de mandado de segurança, com ampla defesa, devido processo legal e sentença regular, relativamente a um processo legislativo por violação regimental de passos e atos processuais legislativos. O problema é que a Pec 33 cuidava, não ilegitimamente, de matéria atinente ao Judiciário e a situação foi política e midiaticamente tensionada. Não utilizaram um processo regular. O apedrejamento e a desmoralização públicos à Pec surtiu o efeito. O paredão foi varrido para recebê-la. E ela já foi para o lixo.

                Nada está imune a um processo judicial regular, mas não foi o que houve com a Pec. Há um precedente de patrulhamento. Tentou-se “regular” a imprensa, há poucos anos, coisa que as Constituições Alemã, Francesa e Italiana conhecem tranquilamente. A reação foi ácida e concertada. Praticamente equiparou-se o pecado de regulação da imprensa no Brasil à morte de Jesus. Foi ridicularizado quem tentou sequer abrir a discussão. O patrulhamento funcionou. Voltou a funcionar agora com a Pec 33.

Mas será que um controle popular como quis a Pec seria todo esse “afronta”? Haveria todo esse “regresso” que adivinhadores do caos anunciam? Há uma linha tênue entre a interpretação técnica da Constituição que, em termos decisórios, cabe ao Supremo e em termos científicos cabe a qualquer jurista, mas em termos não técnicos, sociais e populares pode, perfeitamente, ser dividida com a sociedade. O nome disso? “Democracia”. Ou será que a sociedade tem que ser “substituída” pelos 11 do STF para traçar seus destinos, cultura, hábitos e esperanças? Estigmatizaram o processo legislativo no caso.

Os chefes do Legislativos, políticos profissionais que são, correram para o não enfrentamento. Juraram que a crise, por eles, acabou. Mas sabem que o tema ficou no ar. E o STF pode estar mais em xeque ainda com seu ativismo judicial doméstico. Nem se diga que a tese da “vingança” relativamente à Pec, por causa do Mensalão, seria válida. Balela. A Pec era de 2011, anterior às condenações.

Se essa moda pega, a imprensa vai “ajudar” a dizer o que é matéria constitucional, abrindo crises e proibindo o Legislativo de trabalhar quando achar que algo “não é bom”. A equação é exagerada. Mas tudo foi um exagero. Se já se viveu o porre da democracia, talvez se esteja vivendo o porre da imprensa. Aliem-se coisas detestáveis como o tal do politicamente correto, a intolerância, o consumismo patológico, a ode por se reclamar de tudo e outras ondas sociais brazucas.

Rui Barbosa ensinava que “não existem palavras ociosas na Constituição”. Todo e qualquer termo legal, constitucional, contratual precisa ser interpretado juridicamente. Leigos têm certa dificuldade em “aceitar” isso. Acham que leem literalmente e pronto. No caso da Pec 33, alguns se agarraram à palavra “independência” dos poderes. Mas independência no caso, não é ausência de toque, comportamento estanque radical. Os 3 Poderes praticam funções uns dos outros. Limites e quantidades de outorgas constitucionais, desde que não sejam cláusula pétrea, podem ser revistos. O problema é que tudo está virando lóbi e alguns são bastante poderosos. Jean Menezes de Aguiar