Era um dia de cidade grande,
grande e antiga, como se carros e ônibus tivessem combinado não circular. As
praças viam-se entristecidas por seus bancos vazios e folhados das árvores. Grossos
caules de gigantescas fábricas de folhas sentiam-se ociosos implorando ser tatuados
a canivete por algum casal apaixonado, mas esses haviam decidido hibernar. Encostado
no lado esquerdo do portão de um grande prédio antigo estava Philippe, um
músico francês, esperando o nada. Conversava com a indecisão sobre acender um
charuto que houvera ganhado, um presente dos bons.
Quando passou, apenas
existindo, a deusa que a vida tinha reservado para sua felicidade. Philippe
sabia que este conceito era zombável e filosoficamente pueril, mas se permitiu
esse pensar de relance. Era uma deusa, nenhum homem olha como ele olhou se não
fosse uma. Havia um carinho e adoração naquele olhar, não uma fome sexante. O
feitiço nos quadris fez cessar a indecisão, ocupar a mente quase já ex-ociosa.
A história para ele não era irreal, ele sonhara aquela mulher a um longo tempo.
Construía ali a certeza de que beijá-la seria a morte, o inferno, um terremoto
e o amor eterno, toda essa poética junta. Num surto de sanidade esqueceu o descompromisso,
a indecisão e a ociosidade e seguiu a bela por 3 passos. Bastaram-lhe 3 passos.
Pediu-lhe um minuto, com carregado e recluso sotaque parisiense. Teve em
resposta uma jovem serena e segura, resolvendo dar-lhe um olhar inteirinho de
presente. Começou a querer que o tempo parasse; ele parou e Philippe percebeu
que o tempo se fizera seu companheiro, como se dissesse: vá, resolva, agora só
depende de você. Numa segurança inabalável ela renunciou a tudo e
instantaneamente encheu aquele agora menino de atenção. O olhar de Philippe
perdeu a antipatia francesa, a acidez parisiense e a soberba primeiromundista.
Ele próprio estranhou e achou graça como o amor podia ser tão poderoso a ponto
de causar essa humildade repentina e consciente nele. Logo ele que desprezava a
humildade, essa baixeza humana que só serve para exibição, pensava, e exibição
por exibição prefiro a minha arrogância de ser vivo, teorizava. Mas o certo é
que seu coração disparou. Aquela mulher seria o amor de sua vida, sonhou como
os românticos que insistem em não amadurecer, e aguar os olhos por qualquer
grande bobagem lembrada. Mas isso era um segredo dele, ao mesmo tempo que sua
força mais poderosa, o romantismo entregue, dedicado de um homem.
Por mais de 10 segundos,
que pareceram vários minutos, ambos fitaram-se como que apaixonados, em pé, num
esquina. Ele perdeu a voz, ela perdeu a própria atenção; queria indagar o que
ele queria, mas nem isso conseguia. Amor à primeira vista seria um clichê muito
banal para aquela mulher para lá de bem resolvida. Mas aí havia o paradoxo
nela: de tão liberal e possível ela não afastava de si a hipótese extrema do amor
à primeira vista, só que não aceitava viver a experiência; piegas por essência,
infantil por credo, impossível por finalidade, primária por desejo.
Não podia ser, não existe
assim, o destino não é um conto criado, sussurrava sua razão matemática tão
íntima e menstrual, enquanto seu coração menininha-grande-mulher, traindo-a,
implorava louco aos céus por querer que fosse exatamente assim. Após um
silêncio que pareceu demorar meses, Philippe falou: - um beijo. E ela imediatamente
reagiu, num sarcasmo amoroso genial, certa de que ele a entenderia: só se fosse
o último da vida de nós dois e o altar fosse o próximo passo. Ele, pasmado, não
acreditava em como ela brincava com o destino, devassa, mundana e linda, agora uma
princesa certamente virgem, tamanha a sua inteligência. Ele disse: - Manoela! Ela
respondeu, será menino o nosso filho e se chamará João. Ele não conseguia mais fugir
daquele jogo genial, daquela inteligência devassa e viciante, aguda e entregue,
que transformava sua já dona em uma mulher ainda muito mais linda. Quando ele então
tentou a obviedade para ver no que daria: - não sei nem o seu nome, falei um
beijo e você respondeu com o altar, falei um nome supondo-o seu e você disse
que o nosso filho seria menino; você decididamente não é louca! Só precisa me
pedir em casamento. E ela sorrindo carinhosamente respondeu: não, eu amo
perdidamente. Ela não era uma mulher, agora era uma rainha.
A sinceridade era derramada
numa esquina anônima, entre pessoas comuns, tolas e apressadas que cismam em
trabalhar sem saber muito bem para quê. O amor circulava irresponsavelmente
entre eles, talvez mais rápido que a heroína na circulação sanguínea,
totalmente dominante no momento da liberação da veia. Não nessa exageração de
amor um desejo vulgar, o sexo ficou esquecido, a moeda era um carinho suave e
um pavor declarado em ambos por não viverem um amor. Aí estava o pacto. Isso era
possível. De um simples olhar. Raro, raríssimo, mas possível. Ela invadiu-o:
vamos nos apaixonar sem saber nossos nomes? E ele: -não, nós vamos nos casar.
Ela pela primeira vez gargalhou aberta e barulhentamente, como só as grandes e
poderosas mulheres conseguem fazer. - Você não serve para mim, soou na voz
feminina da conversa. Ao que ele prontamente respondeu: temeu minha
inteligência não é? E ela concordou imediatamente com um riso de boca fechada
como quem fez uma travessura e foi descoberta. Sua graça era infinita, apenas
um superproduto da sua genialidade.
O café era um hábito para Philippe
e foi na entrada do bar, por movimentos daquela mulher ainda sem nome que ele confirmou
o amor. Atordoado perguntou qual seria a identificação dela. Ouviu um açucarado:
- Christine, com o erre forçado dos franceses. Ele imediatamente destacou: -um
nome francês! Os olhares eram embriagados de tanta emoção, as intenções já
conhecidas, os desejos relevados, havia confiança naquela situação, uma
estranha amizade se solidificava sem qualquer porquê. Philippe disse: - nós não
podemos nos perder. Quase antes de ele terminar a frase ouviu em resposta: -
nunca vou lhe deixar. Era impressionante ou totalmente estranho o filosofar
transgressivo de ambos em complementaridade e junção. Aquilo não estava
acontecendo, era o descontexto de um texto que não se escreve, era o reencontro
de um encontro que nunca houve. Não era mais atração, era um confiar, um querer
bem e uma descoberta. A palavra era um só: doçura e encantamento mútuos. Aquela
adulta Christine e totalmente proprietária do seu destino fazia questão de se
entregar, não por uma atração, mas pela circularidade da inteligência delicada
que se construía na relação. A admiração a Philippe não se cansava. Ele se
apresentou e se identificou.
Perguntou como seria um
beijo, e ela respondeu: - de hoje a 6 dias você vai saber, até lá estará “em
provas” comigo, vamos discutir inúmeras possibilidades e atuações, inclusive a
do beijo. Ele se viu refém. Convidou-a a passar os 6 dias em sua casa, dormindo
juntos e agarrados numa cama de solteiro, sem um tocar no outro. Ela disse que
adoraria, mas precisava viajar naquele dia à noite. Começaram a espremer os
minutos, não existia mais cidade, rua, gente, café, garçonete ou celular. Os
olhos não se perdiam. Philippe não era um homem bonito, mas seu romantismo e
entrega acessavam aquela mulher deslumbrante.
Ambos viam-se carentes,
sofridos pelo consumo do sexo fácil, dos encontros produzidos sem olhar, das
noites preparadas para se dar bem. Não havia olhares em ambas as vidas, apenas
ali nasceu o olhar. Ele interrompeu um amoroso silêncio e perguntou: - você me
daria um beijo? O questionamento saído do nada não surpreendia Christine, nada
a deixava surpresa. Sua resposta veio rápido: - mas eu já lhe beijei tanto
nesse tempo que estamos aqui, em sonho; você quer mais um? Havia mais
inteligência nela do que mulher, e isso a deixava tenebrosamente linda, ornada
por longos cabelos escuros e um olhar mais que vivo, energizado e reto. Philippe
pediu um café e um conhaque, Christine chamou a garçonete e ordenou um
atendimento idêntico, frisando: - da mesma marca e na mesma quantidade que a
senhorita trouxer para ele, precisa ser exatamente idêntico, inclusive na
quantidade e densidade! A garçonete sorriu encantada com a inusitada encomenda e
quando serviu disse que podiam trocar à vontade porque, afinal, ambos os
pedidos eram iguais. A gentileza de Philippe cedeu a primeira escolha, ela se
encantou.
Não havia horário de verão
e a tarde era gentil com o anoitecer, cedia espaço rápido e saía correndo para
se refazer, cansada de tantos que insistem em viver de dia, usando-a até a
última gota de claridade. Após 3 doses mantidamente idênticas de bebida o olhar
deles revelou um amor diverso, compromissável, e um silêncio alvissareiro. Os
rostos foram se aproximando em quietude, lentamente, até ficar a milímetros um
do outro, e ouvindo as respirações, como se quisessem conhecer cheiros,
ritmos, gostos e hálitos. Tudo agradou e se tornou mais emocionante. Temiam o
beijar, mas havia invencibilidade ali. Ele veio, caudaloso como um gozar
litral, reservado, lento, ininterrupto, total e suculento, escondido numa quina
da sala do café, como se canto de sala fosse tapume. Foi só entre eles, só para
eles, secretamente escandaloso e denso em sabor e sensações. As bocas buscavam
mais e mais se encaixar e elas próprias se incumbiam de tapar o movimento
ritmado das línguas que se mostravam largas e abertas, desapressadas nos toques
inteiros, prazerosas, íntimos, entregues às mordidas do outro como que querendo
serem prendidas para sempre, permitindo sons de respiração quase que inaudíveis
para eles próprios, havia uma darwiniana produção de saliva lubrificando o
beijar e enganando a evolução como se a reprodução fosse o próximo passo, mas
eles brincavam de felicidade com as bocas naquele beijar único que desafiava o
tempo e um pudor retrógrado qualquer como se a busca por um clitóris beijal
fosse um delito, como se beijar como se come uma fruta aguada, mas não gulosamente
e com a paciência própria do amor, fosse o escândalo obsceno que não podia ser
revelado. Aquele beijo assistido por outrem seria um escândalo, filmado seria uma
grande história de amor. As bocas não se tocavam apenas, prometiam amor eterno
após aquilo que chamaram de “nosso beijo”.
Mas o beijo era um mau agouro e
eles o pressentiram por tanto amor que sentiram naquele beijar. Foi como se não
quisessem que tivesse dado tanto certo, porque a perda ser-lhes-ia fatal. Certamente
por isso insistiram tanto em marcar território em um único e possível beijar,
com cheiros, sabores, sentimentos, ruídos, paladares e sensações. O desastre é
silencioso e imundo. Sua chegada às vezes é suave. Como já lamentou Hölderlin, que
estranha mania essa de Deus de separar as pessoas que foram tocadas pelo amor.
Não havia um Deus confiável ali, absolutamente, ou se tivesse havido algum, ele
começara a dar as costas, numa traição infame e antropofagicamente agnóstica do
próprio Deus para com o amor, invejoso por nunca ter dado um beijo assim.
Christine se levantou
suavemente e disse baixo: - vou embora. Não precisava razão. Eles não
combinaram nenhuma razão, para nada. Philippe apenas aceitou quieto e sábio.
Uma Christine gentil anunciou: um dia nos encontraremos de novo, não é possível
que um amor assim possa acabar. Pegou uma nota de maior valor que havia no
país, pôs sobre a mesa e delicadamente se despediu. Pediu que ele se mantivesse
sentado. Uma lágrima tentou marcar o rosto de Philippe, mas lágrimas não
marcam. Um aperto no peito prometeu lhe causar um dano futuro, esse sim, a
saudade. A percepção da definitividade da despedida lhe cortou a realidade,
lentamente. Ele tentou dar o telefone, num desespero de menino, ela recusou.
Sussurrou um endereço na cidade vizinha e contou que vez em quando andava por
lá. Saiu com a certeza de que ele a encontraria, e a João. Naquele dia o
conceito de amor mudou para nunca mais voltar a ser o mesmo. Jean Menezes de Aguiar.