quarta-feira, 29 de maio de 2013

O soco do prefeito


                                                                         Jean Menezes de Aguiar
Artigo publicado nos jornais O DIA SP e O ANÁPOLIS - semana de 30.5.13

“No meu tempo dava um soco na barriga do cara e tudo se resolvia, hoje em dia querem perguntar como se lidar psicologicamente com a coisa, daí uma geração de maricas.” Clint Eastwood.

O agora já suposto soco que o prefeito do Rio, Eduardo Paes, teria desferido no músico Bernardo Botkay, foi notícia até no New York Times. Mas há ingredientes para o escândalo. O soco não é um soco qualquer. É um soco oficial, afinal se trata do prefeito da cidade mais turística de todo o Continente sul-americano. O agredido é músico, ou seja, queridinho da imprensa. A agressão, como qualquer ato violento, é injustificável. Qualquer? Talvez aí haja reflexões interessantes.

Há agressões físicas perfeitamente admitidas no direito. Há até mortes admitidas. A legítima defesa é apenas uma delas. Fora isso, a sociedade, no dia a dia, também escolhe quem merece ser “punido” com umas boas tapas, como se diz vulgarmente, e quem não merece. O caso mais emblemático está no “bom” e velho cassetete da polícia. Curioso que ninguém reclama de sua existência. Mas repare, apenas o cassetete da PM, que faz parte do uniforme. Se um investigador da Polícia Civil, a paisana, descer da viatura com um porrete na mão, será outra visão. E muita gente se assustará.

Qual é a natureza jurídica do cassetete? Esta pergunta parece brincadeira, mas não é. Todo artefato, equipamento ou ato público tem, no direito, o que se chama de “natureza jurídica”. A arma, o sangue e o esperma do crime, o veículo, o contrato, o gabinete da “autoridade”, tudo para o direito tem natureza jurídica.

Como classificar o cassetete? Será que este bastão de madeira, ou o já há muito proibido cassetete de borracha que gerava uma queimadura perversa no agredido, podem ser pensados como um instrumento de “defesa”? Jamais. O cassetete é, em cem por cento de seu uso, um instrumento de agressão, exclusivamente agressão. Bem diferente é a “tonfa”, o bastão atual da PM paulista em formato de T. O cabo curto da tonfa permite que sua parte longa seja usada como instrumento de defesa, como um escudo. Mesmo assim, o cassetete é aceito pela sociedade. Então algumas “agressões” são aceitas pela sociedade. Legitimadas mesmo.

Começa a se perceber que há agressões e agressões. Quando a PM faz vibrar, com toda força possível, os cassetetes em torcedores boçais que brigam e invadem, nos estádios de futebol, em vez de algemar todos e prendê-los em flagrante pelo crime de tumulto e violência, lei 10.671, artigo 41-B, com pena de reclusão de 1 a 2 anos e multa, não se ouve crítica à PM.

Nenhum delegado de polícia vai querer receber em “sua” delegacia, no final de um expediente de domingo, por exemplo, 50 pessoas presas para que sejam lavrados 50 flagrantes delitos. Muitos e a sociedade aceitam a pancadaria oficial da PM no estádio, agindo, os soldados, com nítida raiva, para com os torcedores infames. Em regra o serviço policial é este, meramente repressor, contentor e organizador do estrupo (com r mesmo). A sociedade gosta do revide oficial e ainda pede mais.

                Ninguém menos que a professora Marilena Chaui para revelar as diversas formas de violência, patologia e agressividade urbanas da sociedade chamada educada, loura, com óculos de marca e carrões SUV. Há uma formidável hipocrisia social nessa chamada “educação” e gente “do bem”. Mas o soco do prefeito foi a manchete da semana.

                Tinha que ser. Prefeito é uma “autoridade” remunerada pelo povo. Não pode dar soco em ninguém. Mas também ninguém pode ter a arrogância de xingar dezesseis vezes uma pessoa perante sua família e amigos, desacatar, retornar para ofender mais ainda, humilhar, e querer que que essa pessoa tenha sangue de barata.

                Tudo bem que Eduardo “Zona-Sul” Paes parece um surfista aposentado, um descolado ator de novela fantasiado de “simples” com havaianas nos pés, ou um ex-hippie-paz-e-amor. Mas chegar às vias de fato ultrapassa o credo parecido com o alcaide budista-zen-vamos-salvar-o-planeta. O fato é: qual sujeito comum numa situação igual à do prefeito não quereria dar um soco no estúpido agressor originário? Repita-se: nenhum soco é válido (viva o chatissimamente correto), mas alguns são merecidos.

                Por outro lado, onde há político há mentira. Terá havido mesmo o tal soco? O soco foi no músico mesmo? O delegado ex-futuro-quase encarregado do caso disse que a história toda está muito estranha e mal contada. Quem passou por exame de corpo de delito não foi o músico. Isso mesmo, foi a namorada, que feriu de leve o joelho. Na delegacia o músico não falou nada de soco, apareceu como “testemunha”. Ainda, o músico que parecia ter tanto ódio e problema com o prefeito, quando teve a faca e o queijo na mão desistiu da representação criminal.

                Já o prefeito correu a público para viver uma culpa quase que publicitária em auto-degradação desejada, com pedido de perdão e expiação generalizada à sociedade carioca. Parece solução de divã psicanalítico. Mas se isso faz as pazes com uma imprensa que poderia cozê-lo até esturricá-lo, tudo bem.

                Agressão originária tem seus preços. Se é verdade que o músico tomou dois socos na cara desferidos pelo prefeito, isso deve ter doído um bocado. Além da rinha própria dos machos, de um apanhar do outro, que em criança se vive, mas como adulto deve doer mais. O músico entrou pelo cano e teve a cara amassada. Noutra análise, pode ter feito o seu comercial e ficar para o resto da vida conhecido como “o músico que tomou soco do prefeito”. Pode ter banda que se interesse por essa marca.
               Ninguém deveria ofender, xingar, agredir ninguém. Mas a exasperação e a intolerância parecem ser a tônica nessa sociedade do consumo. Por outro lado, apanhar na cara deve ser algo bem ruim. O músico teve que dormir com essa, se é que dormiu. Jean Menezes de Aguiar.