quarta-feira, 23 de maio de 2012

Ofendíveis


Algumas pessoas são como grama, se magoam. Ou grama também não é um ser humano (igual a essas aí?)

Artigo publicado no Jornal O DIA SP, 24.5.2012


                Há um tipo de gente no mundo, bastante conhecida, que “se ofende”. É uma gente chata que se sente desrespeitada por qualquer coisa, se magoa, se vitima e tem problema com tudo. Vive patrulhando os outros, querendo que qualquer coisa negativa dita, ainda que em tese, tenha sido contra a sua pessoa. Esse chato adora vestir carapuças, claro, até porque elas lhe cabem perfeitamente.

Neste comportamento em ode à vitimização do sentimento, há um nítido pendor ao autoritarismo, ao conservadorismo e ao formalismo. O “respeito” reverencial e tradicionalista, no tratamento, será, para o ofendível, e invariavelmente cerimonioso, uma beleza estética de conduta. Uma verdadeira flâmula mental de um escoteirismo filosófico. O filósofo Luiz Felipe Pondé, na obra Contra um mundo melhor, mostra que “o normal é ser inseguro, mentiroso, covarde, e não santo ou corajoso”. Mas vá dizer isso a um ofendível. Ele baterá no peito e contestará enérgico: - isso pode ser você, eu não sou assim! Afirmará. Ok...

                Não adianta o ofendível ler um artiguinho desses aqui em 10 minutos, concordar, se ajeitar na cadeira, produzir um pigarro e dizer - “é isso mesmo!” Não funciona. O comportamento de se sentir ofendido ou desrespeitado do chato não se endireita com uma leiturinha dessas.

                E não se pense que isso é genuinamente brasileiro e fruto de uma observação fajuta. A filosofia clínica conhece essas criaturas. O mundialmente conhecido filósofo Lou Marinoff em seu livro Mais Platão, menos prozac – a filosofia aplicada ao cotidiano-, na página 70, ensina: “As pessoas que procuram se ofender sempre encontram motivo para isso; consequentemente, são elas que têm um problema.” Lindo. Ou como dizia Darcy Ribeiro: gozoso.

                É exatamente isso. Essa é uma gente que põe a mão no peito e se diz desrespeitada. Quer “se” dizer afetada para exibir uma vitimização como escudo e daí invocar o “direito” de reclamar do outro. Nesse comportamento espumoso sobra pieguice de segunda e falta honestidade. É o chato presunçoso que invoca uma “moral” para recriminar alguém, se dizendo ofendido: quer poder e atenção. Não é à toa que Nietzsche (A genealogia da moral) dispara: “Todas as morais são configurações do Poder”, ou (Crepúsculo dos ídolos) ainda: “nada é mais raro entre moralistas e santos do que a retidão”.

                Não há, para o ofendível, o senso de humor, a alegria de jogar conversa fora e rir das próprias mazelas ou bobagens. Tudo é levado para o “lado sério”; e chato. Esta figura é intelectualmente uma perdedora e socialmente uma vitimada. Quando é apenas isso, menos ruim. Muitos se tornam agressivos e ofensores. Por isso Oscar Wilde já disparava “Um chato é um homem que nunca é rude - sem querer.”

                Para o ofendível há palavras “proibidas” que ele patrulha nos outros. Compõem o seu menu de proscrição, por exemplo, palavras como “burro”, “ignorante” e “imbecil”. Mesmo quando usadas jocosamente e sem qualquer carga que não a de brincadeira. O ofendível procura se ofender “por procuração” da sociedade, uma que não tem. Reage dizendo que não é correto se usar termos assim. Mas falar que alguém é “burrinho” pode. O ofendível aceita a mentira do eufemismo. Às vezes se vê aí uma bolorenta mistura de provincianismo com uma busca pelo “bom gosto”, no sentido de parecer pós-moderno. Viva Adriana Calcanhoto na música Senhas.

                Há também temas preferidos dos ofendíveis. O famoso escritor inglês Douglas Adams, com o senso de humor que lhe era peculiar, dizia que se pode reclamar de partido político, dos impostos, da rainha e de tudo. Mas “não se pode” reclamar da religião e da fé.  E perguntava respondendo: “-Por que não? Porque não, e pronto.” É tabu para muitos, mas para os ofendíveis será ofensa à alma. Já o grande zoólogo Richard Dawkins afirma que “a fé é especialmente vulnerável às ofensas”. Foi criado esse tecido inflamado que reage mal e em patrulhamento a qualquer crítica. Há um exército em prontidão.

                A particularidade mais interessante no ofendível é que ele procura carapuças para vestir. Algo que seja dito totalmente em tese, sem qualquer referência à sua pessoa, servirá para que ele se apresse a se mostrar, reclamando, claro, sempre, ofendido, magoado. É o famoso “mala”.

                Do lado antagônico desses chatos estão os geniais e bem humorados de todo tipo. É uma gente gostosa, mil vezes melhor e imprevisível, que tanto diz qualquer coisa, como aguenta ouvir qualquer coisa e o último que diria seria essa monotonia mental do “me sinto desrespeitado”. Vale ouvir a inteligência, brincando de setorializá-la a seguir.

                Na literatura, Stendhal: “Todas as religiões são fundadas sobre o temor de muitos e a esperteza de poucos.” Na intelectualidade, Paulo Francis: “As massas, como os leões romanos, jamais passarão fome por falta de detritos culturais.” Na ciência, o biólogo Michael Ghiselin: “Arranhe um altruísta e verá um hipócrita sangrar”. No cinema, Ernest Hemingway: “Você tem que ser irônico desde a hora em que sai da cama.” Nas relações, após recusar a mulher do amigo Sartre, Beauvoir, há Albert Camus: “Imagine o que ela diria no travesseiro depois. Que chatice seria - tagarela, uma completa sabichona, insuportável!” E no fechamento do baú, Alexandre Dumas, impiedoso: “Prefiro os canalhas aos imbecis. Os canalhas, pelo menos, descansam de vez em quando.”

                Qualquer dessas frases e tantas outras saídas de gênios maiores e ditas a um ofendível qualquer geraria reações de dor desejada; desrespeito reclamado; mágoa panfletária, e respostas autoritárias públicas, com acusações agressivas e imbecis, para usar a linguagem de Dumas. Mas a que sintetiza o ofendível é a frase acima do filósofo Lou Marinoff. Ali esstá a raiz de tudo, na própria pessoa, na própria personalidade. Não é nem tanto o elemento heterônomo, externo ao agente que o desestrutura, é a vontade de se dizer magoado, ou uma mediocridade ínsita, encrustada que se inflama e o leva ao ridículo de se dizer ofendido. Essa é uma gente trabalhosa e o melhor que há é mantê-la longe. Inclusive nos Faceboxs da vida. Que falta faz Nelson Rodrigues. Jean Menezes de Aguiar.

domingo, 20 de maio de 2012

Ciência e religião.

 

Qualquer religioso, crente, fiel, devoto ou o nome que se imaginar, pode xingar à vontade a ciência, a filosofia, os cientistas e os filósofos em geral. Sem um pingo de sentimento de culpa, remorso, pena, temor, cerimônia ou medo de parecer deseducado, deselegante, antiético, desrespeitoso, agressivo, boçal ou truculento. Podem chamar a ciência e seus usuários em geral de mentirosos, safados, charlatães, falsos, vigaristas, canalhas, devassos, pecadores, traidores e efetivamente todo o rol de palavrões existente em todos os idiomas e dialetos.

A reação mais provável que conseguirão de cientistas e filósofos será um riso incontido de canto de boca, ou mesmo uma série de gargalhadas barulhentas se, por exemplo, filósofos e cientistas alemães estiverem num botequim carioca enchendo a cara, acompanhados de maravilhosas prostituídas à disposição, para lhes “recompensar” pelas agruras e dedicação das pesquisas, noites mal dormidas, contas, cálculos, pensamentos, teorias e uma infinidade de textos e livros que entulham o banheiro da casa, a cozinha, a sala, o quarto, o automóvel e todos os lugares onde for possível enfiar um algo escrito. Além de custar grana, muita grana. Livro é um opção de vida que custa dinheiro.

Cientistas e filósofos não se sentem agredidos, magoados e muito menos desrespeitados, se qualquer um xingar o conhecimento deles. Eles têm a serena aceitação de seus pares, outros estudiosos sérios que avaliam, testam e qualificam o conhecimento como ele é, em sua essência objetiva. Não precisam da adesão de leigos. É por isso que o grande biólogo brasileiro Paulo Emílio Vanzolini, em entrevista à poderosa revista Ciência hoje (v.20, n. 119, 1996, p.52), perguntado se não tinha que usar uma linguagem mais “popular” nos seus estudos, respondeu deliciosamente: “Sou elitista mesmo. Faço ciência para mim e mais meia dúzia de caras. Cada um que faça o seu serviço e me deixe com o meu.” A ciência é assim, totalmente democrática para quem quiser se habilitar nela por meio do estudo e formação e leva anos. Ficar de fora resmungando nem arranha a ciência, não conta, seja quem for.

Não há no relato dos historiadores da ciência e nos livros de metodologia científica nenhuma pesquisa no pós-obscurantismo, nada, zero, que tenha lançado mão de algum “método teológico” ou oriundo da revelação ou qualquer dogma religioso para concluir qualquer tipo de conhecimento minimamente científico. A ciência se basta e vive, metodologicamente, por ela e para ela e para o que a sociologia da ciência diz ser o seu papel: melhorar a vida em sociedade no quanto consiga.

Ciência pode ser conceituada em duas palavras: conhecimento metódico. Entenda-se método aí, o científico, basicamente dotado de demonstrabilidade, repetibilidade e experimentabilidade, na visão aristotélica. Atualmente é a mera busca de explicações e soluções, nada que ver com a balela da “verdade absoluta”. É por isso que Carl Sagan ensina que o método é mais importante do que a descoberta. É exatamente o método que não outorga à astrologia ou à psicanálise, por exemplo, o conceito de ciência. Podem até a astrologia e a psicanálise ser “conhecimentos”, mas nunca serão científicos. É o que os estudiosos chamam de pseudo-ciência.

Já a religião (o conhecimento teológico), algumas delas de forma muito nítida, vive duas “guerras” para conseguir “adeptos”, ou fiéis, crentes, devotos etc. A primeira é com a busca de novos integrantes; para isso precisa convencer, atrair, atemorizar, prometer salvação, prometer desvendar mistérios e confortar etc. A segunda guerra é a da concorrência que se estabelece em sociedades laicas onde a religião pode ser encarada legalmente com um negócio, comprando prédios, hotéis, restaurantes, escolas, aviões, pagando cachês, salários, honorários, despesas, requerendo consultores, financistas, administradores, diretores, gestores etc. O problema é que a epistemologia do conhecimento teológico se apoia no dogma, na crença. Isso precisa ser explicado e diferençado da epistemologia do conhecimento científico.

Cervo, Bervian e Silva, tradicionais e famosos metodólogos brasileiros, em sua obra clássica Metodologia científica, ensinam a diferença de tratamento e método que a ciência e a teologia dão ao mistério: “Duas são as atitudes que se podem tomar diante do mistério. A primeira é tentar penetrar nele com o esforço pessoal da inteligência. Mediante a reflexão e o auxílio de instrumentos, procura-se obter um procedimento que seja científico ou filosófico. A segunda atitude consiste em aceitar explicações de alguém que já tenha desvendado o mistério e implica sempre uma atitude de diante de um conhecimento revelado.”

Essa dicotomia na epistemologia de ambos os conhecimentos é crucial. Para quem tem a atitude de “aceitar” a fé teológica, como ensinam os autores, não adiantarão provas, equações exatas, demonstrações científicas, nada que possa pôr em risco a sua fé. Sempre terão um argumento essencialmente falacioso e bambo para tentar “relativizar” demonstrações científicas obtidas com o rigor do método. A essa aceitação não metódica e inamovível se dá o nome de fundamentalismo religioso. Já ao cientista, se provas houver de que ele está errado, obedecido um óbvio método objetivo, aferível por qualquer outro cientista, independente de crenças e fé, ele muda de posição sem qualquer dificuldade. Não há sobrenaturalidades ou mitos que o prende a uma conclusão científica. Ele não “acredita” que H2O2 seja água oxigenada. Ela é água oxigenada, e isso independe de qualquer revelação.

Em tempo, adianto que não vou responder a nenhum fundamentalista religioso que "queira" não entender o texto e objetá-lo com crendices, duendes, livros "sagrados", deuses, santos, papais-noéis, demônios e capetas, "métodos teológicos" e outras bobagens que não interessam em NADA à ciência. Para estes, sintam-se livres para achar que o meu texto é imbecil e sejam felizes (faço minhas as palavras poéticas de Vanzolini). Contribuições e erros apontados com a metodologia natural da ciência ou da filosofia serão muito bem-vindos. Jean Menezes de Aguiar.