quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Faltas na formação jurídica.

[Direito. Formação. Conhecimento. 3 Faltas.]

                Há coisas que faltam na formação jurídica, muitos dizem. O Exame da OAB sendo uma enorme barreira à profissão e as reprovações maciças em concursos públicos mostram uma ponta de iceberg. Mas aí, mede-se somente uma formação técnica do direito. São pelas conversas informais e descompromissadas com profissionais que se podem aferir outras carências. Estas, muitas vezes, expõem uma total falta de intelectualidade (tudo bem, é pedir muito), ou falta de modernidade com leituras e valores sociais. Sobram visões autoritárias, legalistas, tradicionalistas e personalistas. Assim, três problemas podem ser apontados na formação.

O primeiro vem de fora, são conhecimentos científicos necessários, que o direito evita. O biólogo mundialmente conhecido Frans de Waal, no último livro A era da empatia, dispara que “os estudantes de direito, economia e política carecem dos instrumentos para examinar a sociedade humana com alguma objetividade.” Não está errado. Não se pode, sob o manto fechado das ciências humanas, desconhecer fatos biológicos, antropológicos e outros do homem, como reações, empatias, espontaneidades, conflitos, atrações etc. Há estudos de comportamento na ciência que poderiam ser utilizados no direito. O saldo do desconhecimento são análises particularistas, reducionistas e com insuficiências para uma leitura complexa e juntiva.

Talvez tenha sido Edgar Morin na década de 1970, com a famosa e difícil obra O método, originariamente em 4 volumes, quem inaugurou, pela interdisciplinariedade, a necessidade do conhecimento juntivo. Depois, com as obras Introdução ao pensamento complexo e Religação dos saberes, cujos títulos já demonstram a que vêm, sedimentou como o conhecimento deve ser complexo e plural, sua marca inconfundível.  Assim, é pela pluralidade que se verá a pobreza do conhecimento especializado ou unicista.

O segundo problema está no plano metodológico. Alguns profissionais não têm a menor resistência a uma conversa permeada pela metodologia, veem-se cansados. Partem para a “agressão” com subjetivismos como “a minha tese”, “ao meu sentir”, “a meu ver”, “eu penso que” e outros ícones da “achologia” ou “achismo” epistemologicamente frouxos. É a praga da “opinião”, que o filósofo Gaston Bachelar diz que precisa ser “destruída”. Até alunos de mestrado e doutorado em direito acham lindo dizer que odeiam metodologia científica. É inacreditável. Como pensam cientificamente? A porta de entrada da ciência é a metodologia. Daí percebe-se que os bate-papos serão autoritários.

Como terceiro problema há as lacunas internas, uma falta de estudo do próprio direito. Eduardo José da Fonseca Costa, juiz federal, em sua ótima obra O direito vivo das liminares, 2011, analisando a dogmática jurídica, divide-a em 3 modelos: analítico, hermenêutico e pragmático, e faz uma afirmação séria. Diz haver “uma sobrevalorização das construções analíticas, por um relativo desinteresse pela hermenêutica e por um total desprezo pelas pesquisas pragmáticas.” Um direito manejado assim será um direito “rápido”, utilitarista, mas essencialmente defeituoso.

                A partir daí, abrem-se alguns questionamentos. Advogados, juízes, promotores e outros do direito precisarão apenas e tão-somente de uma formação mínima para atender a questões sociais que não demandam invocações científicas? Esta é uma visão; mas bastante apequenada. Num outro extremo, talvez intelectuais como Morin pedissem uma formação jurídica receptiva a outros saberes. O caso é que como o Brasil buscou nas últimas décadas apenas “quantidade” de alunos em universidade, ao preço de qualquer qualidade, a formação virou lixo (não só no direito!). A OAB, por exemplo, só recomenda 7% dos cursos de direito no país. É caótica a situação.

                Some-se a isso, a invenção do “Ctrl” no computador, o famoso copiar & colar. Está-se na era da notícia, da informação, da fofoca e da “Caras”; não do conhecimento. Isso tem feito rombos na ética. Antigamente copiar trabalhos dos outros era uma “coisa feia”. Hoje, parece que virou regra. Ou “chique”?

                Sobram nas conversas informais com profissionais do direito o tônus da vaidade e da arrogância. A humildade dos estudiosos, a complacência dos gentis, a eterna dúvida dos pesquisadores parece não caber na formação jurídica em tempos de Google onde todo mundo “sabe tudo”.  Outrossim, o chamado mundo corporativo acha lindo difundir competição e não gentileza. O saldo desses dois fatores, arrogância + competição vem compondo um profissional com Gumex no conhecimento, brilhantina no comportamento, e gel na criatividade. Os moços de terno preto e as moças com bolsas de marca.

                Os livros de Negociação ensinam 2 focos: o foco no problema e o foco na barganha posicional. Quando se discute o problema, esquecem-se posicionamentos, e as soluções são melhores. Quando se estabelecem barganhas presta-se atenção aos negociadores e aparecem conceitos de vencedor e derrotado, ou seja, não se negocia de modo saudável. No direito a impressão é que só há barganhas posicionais, tamanha a preocupação com “pontos de vista” e a vaidade da paternidade do argumento, não sua construção lógica.

                Talvez isso explique a imensa diferença que há entre o discurso nos livros e o que se vê pessoalmente em conversas informais. Os livros tendem a ser científicos, já as conversas tendem a ser vaidosas. Por causa desta diferença, quase que é recomendável, em caso de dúvidas, não se perguntar a humanos no direito, mas à meia dúzia de livros. A diferença nas “respostas” é imensa. Parece que humanos, no direito, não sabem falar “eu não sei”.

                Mario Losano já distinguia o estudioso do profissional, mas a sociedade gosta da “segurança” (leia-se, vaidade ou autoridade) do profissional. Isso mesmo, uma parcela grande da sociedade “compra” histórias de sucesso, mesmo que estapafúrdias e falsas. O consumismo tem pressas. Não se trata de idealizar um profissional estudioso. O Brasil não plantou essa semente, ainda que esses haja naturalmente por aí. Mas são raros. Jean Menezes de Aguiar.




domingo, 20 de novembro de 2011

A neotruculência estatal é ordeira.

O Estado mudou muito apenas nos últimos 20 ou 30 anos. Inúmeras técnicas policiais, de segurança, vigilância, contenção de massas, transmissão de informação, novos veículos para enfrentamento, redes internas de dados, tribunais internacionais, protocolos multilaterais de informações e trocas internacionais de necessidades. Muito disso parece ser imperceptível para a grande massa. Todos os movimentos e passeatas públicos feitos nas ruas que necessitaram da intervenção policial para algum tipo de contenção saíram perdendo. Não há mais como o povo “unido” numa manifestação vencer os técnicos e blindados aparatos de contenção policiais do Estado. Os idiotas estudantes da USP que o digam.

Também ruiu a ideia primária que gente primária tinha de que bandidos no morro tinham mais armamento que a polícia. Essa estultice que foi repetida até por jornalistas inocentes que não conseguem dimensionar coisas, vigeu como credo para muita gente incauta. Quando um governador do Rio de Janeiro resolveu subir morros, invadir, tomar, prender e enxotar vagabundos, as cenas que foram vistas mostram um bando famélico de bandidos brasileiros meia-boca, muitos às voltas com suas pobres sandálias havaianas correndo desesperados para fugir do morro do Alemão. Simplesmente patético. O mesmo na Rocinha.

Assim, o Estado se ultraequipou em todas as áreas, na da Fazenda, do Judiciário, da polícia, das Agências Reguladoras e da informação secreta. Uma primeira conclusão que há se tirar daí é que não se “vence” mais o Estado. Muitos corruptos, de dentro do próprio Estado, continuam vencendo porque ele não quer flagrar essa corrupção, não quer investigar evolução patrimonial. Em 4 anos, por exemplo, a evolução patrimonial do governador do Distrito Federal subiu 400%. E os outros governadores? E os 6 mil prefeitos? E os sujeitos dos outros poderes? Deputados, senadores etc.? Por que não se investiga? Porque o Estado simplesmente não quer. O Estado brasileiro é corrupto na estrutura, em sua visceralidade ontogenética. Há esquemas previamente concebidos em praticamente todas as repartições públicas brasileiras para favores, concertos, privilégios, jeitinhos, conchavos, festinhas de aniversários, e dinheiro, claro, muito dinheiro ilegal correndo. Alguns desses esquemas existem institucionalizadamente, em leis ou portarias imorais, garantindo privilégios, mordomias, favores legais que aí, o ser acrítico e imbecil, não critica apenas porque está na lei.

A nova blindagem tecnológica do Estado tem feito diversas mudanças sociológicas no país. Quer-se agora a impressão de prestabilidade, eficiência e rapidez nos processos visíveis – os burocráticos em que o cidadão aparece nele, em qualquer medida - . Já nos processos internos de punição o segredo é o mais fechado possível. A filha de Roriz será absolvida por um corpo totalmente atécnico de políticos, alguns semianalfabetos, em que a flagrância do delito é sepultada em nome dum detalhismo maquiavélico de se construir que a anterioridade dele faz com que a então criminosa mereça perdão. Se não é patética é devassa essa promiscuidade com processos burocráticos, desde os que devem ser fiscalizados pela cidadania, até estes que podem ficar à margem do controle social.

Um observador atento notará ao entrar em qualquer repartição estatal um núcleo estamental, parafraseando Raimundo Faoro, em que os de dentro olham os de fora com desdém. Há aí uma hemorragia ética, em que o sistema exige a mancomunação e a existência de duas transparências – uma para ser mostrada ao público e outra para ser manejada internamente em segredo. A desfaçatez com o dinheiro público se desavergonha, como se a prostituta chegasse a uma tribo sabendo que ali as prostitutas são consideradas verdadeiramente virgens. Essa inversão de valores se dá na descapacidade mental de muitos que invertem os valores, estranhando ouvir que são pagos pela cidadania privada.

A neotruculência estatal estará exatamente em aparecer como virgem, portadora duma ética intocável, inscrita em ordens e mandamentos legais. Na época da ditadura tinha-se uma truculência visível, imunda, sonora, desorganizada e antropologicamente burra, só não romântica porque matava mesmo. A neotruculência é asséptica, usa ternos caríssimos, tem estruturas tecnológicas de primeiro mundo, a munição nunca mais falhou, as pistolas não travam mais, afinal são austríacas. As prisões às 6 da manhã são vendidas à emissora de televisão vulgar maior do Brasil como furo de reportagem que ninguém discute, ou percebe. A técnica definitivamente chega ao Estado, tanto para conter, quanto para enganar, para subtrair dinheiro público em benefício próprio.

Para analistas atentos, o Estado perdeu totalmente o respeito. Seus deputados e outros ficam impondo ser chamados de excelência para cá e para lá, mas é tudo comparado a uma grande orgia com secretárias, datilógrafas, assessoras, estagiárias, atendentes e qualquer uma que atravesse o canal do poder. O poder em-si, no Brasil, perdeu a expectativa de honestidade, isso é o que de pior poderia ocorrer. Não se trata de perder a honestidade em si, isso já tinha sido solapado com a ditadura, a inventora brasileira da corrupção, numa análise pragmática circunscrita a uma atualidade recente de 50 anos. Trata-se de perder a expectativa dela. Caem o véu da náusea e a desesperança. Estamos vivendo a pós-escatologia analítica. O Estado brasileiro vira sinônimo de corrupção e tecnologia voltada para blindar essa corrupção, praticamente em todos os níveis possíveis.

Na ditadura roubou-se muito. Em todos os governos também. A falação de que o roubo foi inventado por Lula e pós-lula obedece a uma lógica imbecil de reacionários mentalmente comprometidos. O fato é que talvez agora o que haja seja uma maior dificuldade de contenção da informação com o roubo público que está em 85 bilhões anuais, e aí, todos ficam sabendo. Em 12 anos são 1 trilhão de reais, dinheiro da sociedade, esta mesma que opta por não reclamar a conta. Sinceramente não sei qual é a truculência pior, se a sangrenta e a do medo, da época da ditadura ou a da perda da esperança no futuro, exatamente quando o Brasil se transforma no país do presente. Jean Menezes de Aguiar.