[Direita. Esquerda. Golpe de 1964. Luta armada. Anistia. Direito]
Questão primeiríssima a se considerar, quando se discute a tortura e a ditadura havidas no Brasil, são duas ordens muito nítidas de separação em compartimentos estanques: a primeira é relativamente à díade direita e esquerda; e a segunda, entre governo e clandestinidade. Solapar essas diferenças que se organizam internamente entre si ou será mentir ou desconhecer técnicas de formação metodológica de raciocínio. Ou será cinismo, ou burrice.
Direita e esquerda continuam a existir, hoje talvez com mais necessidade de afirmação e conscientização, se considerada a sociedade pós-ética atual, totalmente lânguida e patrulhadora pelo viés do politicamente correto, que permite e aceita muito bem o preconceito disfarçado e arrumadinho, facilitando um cinismo ideológico ou não cobrando posturas nítidas das pessoas. Direita e esquerda, conforme ensina ninguém menos que Norberto Bobbio em sua famosa obra (Direita e esquerda), na qual na 2ª edição teve o filósofo a possibilidade de discutir e refutar pacientemente todas as críticas que se lhe vieram à época, são lados nitidamente opostos e, em razão disso, facilmente perceptíveis em qualquer interlocutor, numa conversa de 30 segundos. Se os de esquerda são jacobinos, os de direita são reacionários, ensina Bobbio. Já Noam Chomsky afirma que a esquerda está do lado dos pobres e a direita do lado dos ricos. E Millôr Fernandes sentenciou, sobre o Brasil: “Não gosto da direita porque ela é de direita e não gosto da esquerda porque ela é de direita.” Assim, afora a jocosidade de Millôr, que é ratificada por FHC quando disse no exterior que aqui todos os partidos são de centro, numa imputação de cinismo cabível às esquerdas e às direitas, é simplismo e sem-vergonhice dizer que direita e esquerda não existem mais, que no mundo globalizado “isso” não se sustenta mais. Desconfio do caráter e da honestidade desses superficialistas de plantão. Prefiro um enlouquecido Nini (Nilton Cruz) a um safado murista (que vive no muro ao sabor dos próprios interesses).
Outro ponto que não pode ser “confundido” é a diferença óbvia entre Estado e clandestinidade. Na tal “guerra” que os órgãos de repressão oficial sustentavam existir, como sendo a oriunda da “luta armada”, tinham-se polos totalmente não equipolentes. O Estado, obviamente contava com Exército, Marinha, Aeronáutica, PM, polícias federal, civil e rodoviária, ministérios e milhares de servidores públicos obedientes via salário, além de toda uma política e estrutura de Estado, com armamento, aeronaves, preferências dadas a “autoridades” em aeroportos e outras semissafadezas etc. Já a clandestinidade era um amontoado praticamente amador de idealistas, sem qualquer formação estruturada e com equipamento simplesmente risível, se comparado aos maquinários e armamento do Estado. Taís Morais e Eumano Silva, na extraordinária obra Operação Araguaia – os arquivos secretos da guerrilha, expuseram perfeitamente isso, por exemplo, às páginas 627. Ali, apresentam o ridículo que eram as aproximadamente 40 armas dos guerrilheiros no Araguaia, uma lista que cabe em um canto de uma página de livro. Equivale ao que Hélio Luz fala, rindo e zombando, do “crime organizado” do Rio de Janeiro, no curta metragem Notícias de uma guerra particular. Considerando-se que no Araguaia, por exemplo, houve toda uma “preparação” da esquerda, as armas, obviamente todas letais, eram de total insignificância, se comparadas à potencialidade do armamento oficial do Estado, mesmo àquela época que imperava uma bagunça e uma zona em todas as polícias do país. Na lista dos guerrilheiros do Araguaia, veem-se inacreditáveis espingardas calibres 22 e 36, várias, e pistolas 7.65. Nenhum estrategista de segurança minimamente equilibrado do planeta daria aval a uma resistência daquelas, se o oponente fosse um Estado. Ali havia pessoas completamente sonhadoras, com aquele nível totalmente amador de armamento e munição mal guardada e molhada como foi. Se a ilusão burra, advinda de uma comparação totalmente descabida com a China de Mao Tsé-Tung, cujo ensinamento de guerrilha era “Quando o inimigo avança, recuamos; quando para, o fustigamos; quando se cansa, o atacamos; quando se retira, o perseguimos”, onde havia o povo, nada menos que o povo, para oferecer essa resistência, no caso do Araguaia havia “meia dúzia” de famintos que, ao final, foram facilmente dizimados por 14 aviões e 4 helicópteros, com logística das Forças Armadas.
A avassaladora diferença entre Estado e esquerda armada, principalmente no Brasil, impõe uma diferença jurídica no tratamento de ambos os lados envolvidos que muitos insistem em não ver. Essa diferença óbvia de tamanho e de concepção institucional (de um lado a obrigação de um Estado legal e do outro “bandidos”, admita-se essa terminologia pedagógica) jamais permite um nivelamento, uma equiparação. Fica patente que a anistia ampla, geral e irrestrita, parida por quem empreendeu o golpe de 64, perdoou “bandidos” da esquerda, mas perdoou violações de direitos humanos praticadas pelo Estado, coisas totalmente diferentes. De novo, qualquer tentativa de nivelamento nesse contexto ou será 1) incompetência, ou 2) cinismo e má-fé, ou 3) interesse político apaziguador, mas nunca possibilidade real de considerar Estado e esquerda armada em patamar de igualdade. Isto nem existe na concepção jurídica institucional de ambos os lados, em nenhum país do mundo, nem em par conditio. Este ponto, da não paridade de condições, expõe a verdade de que o Estado não enfrentou outro Estado, jamais, mas um bando de idealistas armados. Isto acaba sendo nodal para a compreensão do desequilíbrio dos polos envolvidos e a intelecção da necessária dicotomia jurídica de tratamento a ser dispensado a eles. É exatamente aqui que se tem o paralelismo das construções: 1) o conceito funcional da violação a direitos humanos, aí somente praticável unilateralmente por parte do Estado, e 2) crimes, verdadeiros crimes, praticados pela esquerda armada. A esquerda armada “não viola” direitos humanos quando mata um militar ou assalta banco, pratica um crime de homicídio ou, se houver, um crime qualificado por alguma lei de segurança nacional, fundamentada, a ação, em suas alegações da esquerda armada, falsas ou verdadeiras, e ideologias justificadoras ou não, de fazer aquilo. Há punição legal e prevista para isso, conforme o Estado de Direito. Mas o Estado, que é financiado para não cometer crimes e tem um dever ético e institucional de ser legal, quando pratica o mesmo crime de homicídio comete – e só ele “pode” cometer, aí – uma violação a direitos humanos. Os lados são diferentes e as consequências na classificação são, obviamente, diferentes. Pôr tudo no mesmo saco é, de novo, ou burrice, ou cinismo.
Nagib Slaib Filho, em seu ótimo livro Anotações à constituição de 1988 afirma ironicamente que todo revolucionário perdedor vira golpista e todo golpista vencedor vira revolucionário. A História admite ligeiras falcatruas sociais. O que houve em 1964 no Brasil foi um desavergonhado Golpe. Heloisa Maria Murgel Starling, em sua tese de doutorado publicada, Os senhores das gerais, mostra como o golpe foi articulado, nas entranhas. Nada de revolução. O povo brasileiro não tem história nem cultura revolucionárias, se tivesse o país não chegava ao ponto que chegou depois de 1970, não passava por 83% ao mês de inflação na famigerada era Sarney. Somos o povo do Maracanã e da bunda. Hoje, da desgraça da música sertaneja parida por Collor. Revolução é um contexto nobre demais para essa gente brasileira que só quer saber dessas coisas.
Se tivemos golpe, tivemos ditadura e tivemos tortura. Quase alcançamos a ditadura portuguesa, que tinha em cada lugar do Estado 2 delatores oficiais, sendo que um não conhecia o outro, ambos tendo que delatar, veja que horror. Mas em termos de mortes e sumidura provocadas pelo Estado vencemos em disparada. Tivemos um núcleo do horror no país, entre civis e militares, inclusive com consultoria internacional. O adido francês, por exemplo, que inventou o choque elétrico na Argélia e era amigo de Figueiredo, deu “consultoria” in loco.
Aí veio a anistia brazuca, perdoando igualmente 1) os criminosos da esquerda (deixe assim para transparecer alguma isenção metodológica) e 2) os violadores de direitos humanos, exclusivamente o Estado. Malandramente nivelou-se tudo e criou-se esta cultura mentirosa do nivelamento, a ponto de respeitáveis senhoras viúvas e mães de militares mortos invocarem “direitos humanos” pelos assassinatos de seus maridos e filhos pela esquerda, como se a morte “em cumprimento do dever” fosse violação de direitos humanos. A morte há, o homicídio há, e nada justifica o assassinato, nem da direita nem da esquerda. Apenas os lados são completamente diferentes. Bandido não ganha adicionais de periculosidade, munição, moradia, soldo + salário, ticket alimentação, transporte, vestuário, férias, 13o, 14o, associação de recreação, plano de saúde, aposentadoria, promoção, aumento de salário etc., tudo pago pela sociedade. Sim, pela sociedade que não pode ser “justiçada”. O criminoso seja quem for deve responder legalmente a um processo e ser condenado regularmente, não esquartejado e torturado, como foi. Fazer cara feia para esse tipo de equação bilateral, é automaticamente revelador de um dos lados da díade, aquele conhecido como “destro”.
Agora vem a “Comissão da Verdade”, do Governo Dilma, uma insuspeita, presa política, que, dentro da cultura já herdada do nivelamento poderá “convocar” pessoas. Está-se discutindo hoje, no Governo qual é a natureza jurídica do “convocar”, a partir de que um convocado compareça e se escuse de falar em razão da lei de anistia. Vai sair de lá zombando da Comissão da Verdade. Na Argentina há ninguém menos que generais presos. Isso mesmo, regularmente processados, com ampla defesa, condenados e presos. Assim é a lei que não se quis no Brasil, do Maracanã e das bundas. A ONU estimula que comissões da verdade sejam feitas pelos países, para que os horrores de guerras e ditaduras não voltem a ocorrer. Não tem nada que ver com a balela malandra e mentirosa do “revanchismo”. Se houvesse revanchismo a esquerda sobrevivente quereria torturar e isso nunca houve. Mas deixar os crimes praticados pelo Estado no esquecimento cínico é o que de desequilibrado e juridicamente bêbado houve na balança.
O termo “direito humano” apareceu pela primeira vez com Voltaire, em 1763, no seu Tratado sobre a tolerância, numa funcionalidade conceitual bem diferente da que temos hoje em dia e mais ainda no Brasil. Essa origem é mostrada pela panamenha Lynn Hunt, professora na Europa e na UCLA, na profunda obra A invenção dos direitos humanos. A esquerda se “apoderou” do conceito no Brasil como em todo o Cone Sul, em cobrança à legalidade com os Estados ditatoriais. Um excelente e didático filme para se compreender as relações entre sociedade, Igreja, povo, classe dominante e Estado tem o título de Romero, com o lindo e saudoso Raul Julia, retratando a ditadura em El Salvador, história real do Arcebispo Oscar Romero, assassinado pelos militares em dia 24 de março de 1980, fazendo a missa fúnebre da sua mãe. Não sei se existe em DVD, se alguém achar me diz onde posso comprar. Abraços gerais. Jean Menezes de Aguiar
O termo “direito humano” apareceu pela primeira vez com Voltaire, em 1763, no seu Tratado sobre a tolerância, numa funcionalidade conceitual bem diferente da que temos hoje em dia e mais ainda no Brasil. Essa origem é mostrada pela panamenha Lynn Hunt, professora na Europa e na UCLA, na profunda obra A invenção dos direitos humanos. A esquerda se “apoderou” do conceito no Brasil como em todo o Cone Sul, em cobrança à legalidade com os Estados ditatoriais. Um excelente e didático filme para se compreender as relações entre sociedade, Igreja, povo, classe dominante e Estado tem o título de Romero, com o lindo e saudoso Raul Julia, retratando a ditadura em El Salvador, história real do Arcebispo Oscar Romero, assassinado pelos militares em dia 24 de março de 1980, fazendo a missa fúnebre da sua mãe. Não sei se existe em DVD, se alguém achar me diz onde posso comprar. Abraços gerais. Jean Menezes de Aguiar
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