segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Sobre o desespero e a perdição

[Desespero. Perdição. Kierkegaard. Amor.]

Há várias formas, tratadas pelos filósofos, de conceber a superioridade do homem sobre o animal. Uma muito interessante não é nem a de, propriamente, fazer máquinas, mas "aperfeiçoá-las". Recentemente (2011) a biologia marinha filmou um peixe de oceano que leva na boca uma cápsula dura do fundo do mar até um coral e a atira com força, para quebrá-la e ter acesso ao alimento que tem dentro dela. A zoologia conhece o pássaro que pega uma nós e põe na estrada para que automóveis passem por cima dela e a quebre, para que ele, finalmente, consiga pegar o alimento. Essas estruturas que não estão apenas no chimpanzé – não só ele age assim, com seus mais de 99% igual a nós humanos – existem em outros tantos animais e são simplesmente surpreendentes, e encantadoras.

A contribuição do atormentado filósofo Søren Kierkegaard, na obra O desespero humano, é a de que “o desesperar-se” é uma categoria muito acima do andar ereto e representa a grande distinção sobre os animais, algo próprio da nossa espiritualidade sublime. Chega a questionar o pensador se o desespero seria uma vantagem ou uma imperfeição. Em termos de desespero, pense-se, por exemplo, naquele do homem pela mulher amada que mora longe e custará a chegar o dia a mimá-la, em detalhes centimetrais, escolhidos literalmente a dedo e carinhos, cuidar de suas exigências, vontades e ordens, elogiar seus esmaltes desvairados e loucuras no vestir e dar-lhe asas à imaginação irresponsável e devassa. O desespero do amor, seja pela dúvida de sua existência e expectativa de que ele se resolva entre abraços e gozos; seja pela saudade do amor longínquo; seja pela perda definitiva, é dos piores que há.
  
Mas Kierkegaard diz que a “perdição” seria um degrau ainda abaixo, ou seja, pior que o desespero. Aqui se situa uma potencial gradação interessante. Num rápido confronto conceptual poder-se-ia arriscar uma comparação que seria:

DESESPERO                                                           PERDIÇÃO
Transitório                                                                  estável
Subjetivo                                                                    perceptivelmente objetiva
De experimentação sensível endógena                de mostragem percepcional exógena
Gerador de dor                                                           gerador de preocupação
Traz a inerência da cura ou saída                                 traz a inerência do fim
Graduável                                                                   cabal
Atenuável                                                                    irreversível enquanto conceito
Procedimental                                                             decisional
De difícil disfarce                                                        disfarce impossível
Doméstico                                                                  público
Autocurável                                                                falencial

Toda a filosofia da angústia e do existencialismo cru, perdoe-se o pleonasmo, é sedutora para quem trabalha com o pensamento. A busca da crueza conceptual é sempre um itinerário aproveitável para outros motes e objetos de análise, tanto enquanto procedimento metodológico, quanto paradigmas de uso e manejo de conceitos incidentes e mesmo de previsão de resultados a se alcançar.

Em termos do objeto em si, o desespero, a angústia e a perdição compõem, com outros tantos conceitos da desgraça e da dor – Kierkegaard inicia sua obra pelo conceito da doença mortal – um menu altamente sugestivo para análises potencialmente aprofundáveis, já que mexem e lidam com internalidades do próprio teórico envolvendo tanto seu emocional, no que há de mais verdadeiro, quanto a previsão que ele tem de sair do novelo teorético ao qual se mete, invariavelmente, para trabalhar com os conceitos e manejos.


Toda a rejeição da sociedade quanto a esses objetos incômodos não cessam de fazer o filósofo pesquisar, pensar e produzir, no sentido de dar continuidade infinita à sua busca por um existencialismo – o nome aí vê-se impróprio no conceito sartreano – ou busca do real a todo curso. Há toda uma visão deística em Kierkegaard que talvez se lhe retirasse alguma aproveitabilidade de uma cepa filosófica purista que se quisesse ter, contando-se com a objetividade de uma produção em-si, sem a “invocação” do mito, da fé, do divino. Por outro lado, a todo momento ele corrige o que poderia ser-lhe discutível, com a voracidade de um pensamento selvagem (Levy-Strauss) sobre o próprio filosofar e maneja a presença de Deus compositivamente no filosofar, e não com a episteme estelionatária de pregadores religiosos que se referem a Deus como o terceiro bom a querer o bem a um percentual do salário. O desespero é dos motes mais interessantes neste estudo do autor, estimulante e instigativo. Uma referência profunda sobre o espírito, que ele próprio conceitua como o eu. Jean Menezes de Aguiar

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