Artigo publicado também no site Consultor Jurídico, 17.1.13
Algumas sociologias ou movimentos sociais são
imperceptíveis, ou tácitos. É como se um grande acordo fosse feito na sociedade
e aplicado de forma a passar a ser assim de agora em diante. Observadores
atentos percebem, invariavelmente depois de algum período de surpresa. Já a
sociedade continua apenas a “sofrer” os efeitos sem desenvolver um olhar
crítico explicativo para a mudança.
O direito processual penal como um sistema jurídico
concebido para conflitos graves, envolvendo crimes, que a sociedade não quer
ver irresolvidos evolui. Sempre evoluiu, nunca involuiu. Afora momentos de
guerra ou ditaduras em que se pôde verificar certa involução episódica, o
sistema acabou até se beneficiando desses períodos nefastos para exatamente
sedimentar saldos evolutivos e progressistas. Isso quer dizer que a sistemática
de penas impostas a crimes, observada uma imaginária linha do tempo em grande
escala, nunca foi regressional, sempre melhorou e garantiu melhores condições a
réus condenados.
Não se aborda, com isso, o sistema “prisional” em si, o penitenciário,
ligado ao cumprimento da pena. Este é sabidamente falido e, este sim, sofreu
nítida involução com o advento do crime organizado. Ficar um ano preso equivale
a uma pós-graduação no crime com todas as letras e eficácias, e isso não tem
nada de fantasioso ou metafórico.
Pode-se dizer que operadores do direito estão um tanto quanto atônitos
com, a um lado, certa escalada de crimes não fisicamente violentos e ao mesmo
tempo descobertos por uma imprensa efetivamente livre, envolvendo na linha de
frente as chamadas “autoridades” do Estado e pessoas “famosas”, e por outro
lado esses mesmos infratores continuando livres, o que gera um clamor social.
O que se aborda por sistema processual penal aqui é a
teleologia – modelo de pena – de o que ele reserva para o agente criminoso.
Sempre se esperou, popularmente, deste sistema a cadeia, o encarceramento. Para
agentes públicos, as “autoridades”, com uma imprensa livre, a demanda, ou mesmo
furor pelo encarceramento foi aumentado. Ocorre que com a onda liberalizante,
menos encarcerativa havida no sistema processual penal, todos indistintamente
se beneficiaram. Isso obedece a uma assimetria: quando mais infamante for o
crime, por exemplo, apropriação filmada de dinheiros legislativos em cuecas e
calcinhas, ainda que sem violência física, a demanda por punição se mostra mais
severa. O caso é que, invariavelmente, essas situações ficaram sem a célebre
punição popular esperada, a cadeia; aí sua assimetria. Não adiantou o cenário
ser infamante, o que deu o tônus da gravidade foi a presença ou ausência da
violência física.
Neste compasso parece que o sistema processual penal
descobriu "uma nova modalidade de pena: a pena-problema". O problema é algo que
pode ser suave ou gravíssimo. Um câncer terminal é um problema gravíssimo. Se o
sistema processual penal tiver o poder de criar um problema grave para o réu
sabidamente culpado, por exemplo, pegado em flagrante, ou para o já condenado,
haverá, talvez perfeitamente, um novo modelo legítimo de vingança social,
punição, padecimento que poderá perfeitamente equivaler à pena de
encarceramento: esta pena-problema.
Miguel Reale, quase poético (O direito como
experiência: introdução à epistemologia jurídica) ensinava que pena de
morte “não é pena” porque o sujeito morre, não fica vivo para sofrer a pena. A
pena de encarceramento talvez seja, para efeito de impactação social, concentradamente um
“instante” vivido: aquele ao qual o agente é encarcerado. Depois isso se “estabiliza”, as pessoas
se acostumam. Todo o seu círculo social fica sabendo e “resolve” a situação.
"Fulano está preso, é, que coisa", sentencia a sociedade, e ponto final, a vida continua.
Mas se um problema, grave, de acusação penal é criado pelo sistema processual penal e o sujeito é mantido solto para viver e ter que tanto digerir uma expectativa de solução, quanto explicar em cada esquina o que está passando, ou, se não explicar, ver-se entre olhares acusativos e discriminatórios da sociedade, podendo inclusive perder amigos, parentes, socialidade etc., pode-se estar diante de um problema a ser vivido, experimentado, de grande monta. Esta é a pena-problema. Não se diz que o "tempo de prisão" seja algo "leve". Óbvio que nao. Mas prisões longas já se sabem que não se sustentam, salvo para crimes com violência. Colarinho branco não irá à prisão longa no Brasil. Há que se aceitar esse caldo cultural produzido pelas "autoridades" oficiais em cínica mancomunação com a impunidade. Fora disso há sonho.
Mas se um problema, grave, de acusação penal é criado pelo sistema processual penal e o sujeito é mantido solto para viver e ter que tanto digerir uma expectativa de solução, quanto explicar em cada esquina o que está passando, ou, se não explicar, ver-se entre olhares acusativos e discriminatórios da sociedade, podendo inclusive perder amigos, parentes, socialidade etc., pode-se estar diante de um problema a ser vivido, experimentado, de grande monta. Esta é a pena-problema. Não se diz que o "tempo de prisão" seja algo "leve". Óbvio que nao. Mas prisões longas já se sabem que não se sustentam, salvo para crimes com violência. Colarinho branco não irá à prisão longa no Brasil. Há que se aceitar esse caldo cultural produzido pelas "autoridades" oficiais em cínica mancomunação com a impunidade. Fora disso há sonho.
Lalau, o seriíssimo juiz do trabalho, talvez seja um
exemplo assim. Não precisou ir para a cadeia para ter sua vida arruinada,
ganhar um apelido público de ladrão e ter sua até então inatacável honra e bom
nome jogados à lama. Lalau foi punido severamente? Será que somente a cadeia
fá-lo-ia sofrer? Parece que foi e sofre até hoje, há se admitir
responsavelmente. Collor pode ter sido outro exemplo. A desmoralização e
inelegibilidade por 8 anos impostas representaram uma pena gravíssima para aquela figura
vaidosa, arrogante e empafiosa que passou a andar com o Dicionário de
Política de Norberto Bobbio embaixo do braço para se vender como
intelectual e que conseguiu chegar à presidência da República? Parece que não
há dúvida. Se, após exauridos esses momentos ele volta como senador não há
qualquer resquício de problema. Não há penas perpétuas. Collor padeceu o
inferno em vida por tempo certo, perdeu a mulher, estima-se que tenha experimentado o degredo e
a zombaria sociais, inclusive na vizinhança de sua casa, cidade, estado e até país,
e, passada essa experiência imposta, pôde voltar normalmente.
Parece que advogados que atuam no crime aprenderam uma
lição: apresentam o cliente ao Judiciário e sabem que ele ficará preso alguns
meses. Isso é combinado e acertado com o cliente. Esses meses são o momento crítico da pena-problema. Há
uma “trato” feito. O réu não foge; se curva ao sistema processual penal; mostra
que não é arrogante; se coloca num plano inferior ao juiz mesmo que seja lindo
e bilionário (isso é o que parece mais contar – autoridades adoram a
subserviência, mesmo que safada, mentirosa e cínica); e passados alguns meses
é solto para nunca mais voltar ao encarceramento. Estão aí as novas regras do jogo.
A pena-problema para "autoridades" e pessoas públicas não é
fácil de ser enfrentada. Pode envolver este encarceramento inicial.
Paralelamente há um processo penal público ao qual o Judiciário e a sociedade se
sentirão bastante vingados se a imprensa expuser o acusado às entranhas do
ridículo. Há a questão de honorários advocatícios que podem funcionar como um
agravante financeiro imenso, o que é bom neste diapasão da vingança social: sangrar financeiramente o criminoso. Não é raro acusados desfazerem-se de
imóveis, fazendas, para pagar honorários. A perda pode ser imensa. Outro fator
cruciante é o tempo. Como a justiça é dolosamente lenta, o sujeito padecerá por
longos anos, considere-se, por baixo, uma década, pendurado à pena-problema, o
que, reconheça-se não é pouco.
A pena-problema não aparece aí como uma “proposta” cínica
de punição meia boca. Ela já existe. Quando Carlinhos Cachoeira se dirige feito
boi manso ao cárcere, ele faz a alegria do Judiciário que comemora com uma
festinha a portas fechadas na vara criminal que determinou a prisão: nós vencemos, nossa autoridade é mais forte que o dinheiro dele, todos riem e comemoram. Faz também
a alegria da sociedade que se sente vingada e com uma visão de que até o Cachoeira,
marido da lindona que desperta ódio nas jornalistas (todas), é “prendível”. Faz
a festa da imprensa que consegue faturar com audiência e anunciantes. A
pena-problema agrada a todos, não esquece de ninguém. Aí, passados 6 meses é claro que haverá alguém a
soltar o pobre-coitado com a certeza implícita de que, jamais ele retornará à prisão. Este
é o trato social.
O sujeito continuará a gastar com advogados, a ser “alguma” manchete na imprensa. Mas, por outro lado, viverá melhor porque “afinal” uma “autoridade” superior o soltou. Isso é uma meia absolvição. Esta semana foi a vez do contador de Cachoeira, se curvar, se entregar, se humilhar e se oferecer à imprensa para sua expiação. Já se sabe, é o trato. Seis meses preso e depois, rua. A pena-problema não cessará, continuará a arder para ele, por anos. É o preço.
O sujeito continuará a gastar com advogados, a ser “alguma” manchete na imprensa. Mas, por outro lado, viverá melhor porque “afinal” uma “autoridade” superior o soltou. Isso é uma meia absolvição. Esta semana foi a vez do contador de Cachoeira, se curvar, se entregar, se humilhar e se oferecer à imprensa para sua expiação. Já se sabe, é o trato. Seis meses preso e depois, rua. A pena-problema não cessará, continuará a arder para ele, por anos. É o preço.
A pena-problema é uma realidade. Principalmente para um
sistema processual penal bastante discriminatório e preconceituoso como o
brasileiro que se blinda numa tal Constituição Cidadã, aliado a um sistema penitenciário esquizofrênico e impotente a
falanges e organizações criminosas (secretários de assuntos penitenciários
perdem o emprego, não podem ter distúrbios em suas pastas, daí cedem se
pressionados; essa mecânica já foi desmascarada). Faz sentido pegar alguém que
não é um assaltante de banco, um estuprador, um assassino (rotineiro!), um
traficante e impor a pena-problema? Acaba fazendo, ela é o que há no sistema. Ela pode ser um tormento gravíssimo a clivar
personalidades antes inatingíveis, blindadas pela arrogância, empáfia e poder
do dinheiro ou outro qualquer. Aí pode estar um mote educativo penal até interessante.
Heterodoxo, mas interessante.
A pena-problema já está em uso no Brasil. Ela aparece,
socialmente, não como uma elucubração genial de um pensador jurídico, mas como
um tumor oriundo de um sistema paquidermicamente doente e sem cura. Mas
consegue se regenerar e se repaginar. É como se usasse uma roupa de carnaval
durante todo o ano para mostrar algum sintoma de alegria ou diferença. A
pena-problema comportará graus, de leve a gravíssimo, conforme também a
gravidade do crime do agente.
Talvez a pena-problema seja uma visão antropológica
carcomida de um fenômeno cultural que veio para ficar. Suavemente, sob outros
nomes sérios e formalistas como “pena alternativa”, “movimento
anti-encarcerativo” etc. Mas ela é o pus de um sistema impagável, recheado de
impunidade quando se falam em "autoridades" e pessoas socialmente poderosas. Só que com o
advento da imprensa livre, que hipertrofia a pena-problema
tornando-a imunda e dolorosa, conseguiu deixar de ser esse pus e talvez tenha se
transformar apenas em uma água turva. Não potável, mas uma que serve a diversas
coisas, inclusive a apagar incêndios sociais. Jean Menezes de Aguiar.
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