sábado, 9 de junho de 2012

Uma história de amor



Era um dia de cidade grande, grande e antiga, como se carros e ônibus tivessem combinado não circular. As praças viam-se entristecidas por seus bancos vazios e folhados das árvores. Grossos caules de gigantescas fábricas de folhas sentiam-se ociosos implorando ser tatuados a canivete por algum casal apaixonado, mas esses haviam decidido hibernar. Encostado no lado esquerdo do portão de um grande prédio antigo estava Philippe, um músico francês, esperando o nada. Conversava com a indecisão sobre acender um charuto que houvera ganhado, um presente dos bons.

Quando passou, apenas existindo, a deusa que a vida tinha reservado para sua felicidade. Philippe sabia que este conceito era zombável e filosoficamente pueril, mas se permitiu esse pensar de relance. Era uma deusa, nenhum homem olha como ele olhou se não fosse uma. Havia um carinho e adoração naquele olhar, não uma fome sexante. O feitiço nos quadris fez cessar a indecisão, ocupar a mente quase já ex-ociosa. A história para ele não era irreal, ele sonhara aquela mulher a um longo tempo. Construía ali a certeza de que beijá-la seria a morte, o inferno, um terremoto e o amor eterno, toda essa poética junta. Num surto de sanidade esqueceu o descompromisso, a indecisão e a ociosidade e seguiu a bela por 3 passos. Bastaram-lhe 3 passos. Pediu-lhe um minuto, com carregado e recluso sotaque parisiense. Teve em resposta uma jovem serena e segura, resolvendo dar-lhe um olhar inteirinho de presente. Começou a querer que o tempo parasse; ele parou e Philippe percebeu que o tempo se fizera seu companheiro, como se dissesse: vá, resolva, agora só depende de você. Numa segurança inabalável ela renunciou a tudo e instantaneamente encheu aquele agora menino de atenção. O olhar de Philippe perdeu a antipatia francesa, a acidez parisiense e a soberba primeiromundista. Ele próprio estranhou e achou graça como o amor podia ser tão poderoso a ponto de causar essa humildade repentina e consciente nele. Logo ele que desprezava a humildade, essa baixeza humana que só serve para exibição, pensava, e exibição por exibição prefiro a minha arrogância de ser vivo, teorizava. Mas o certo é que seu coração disparou. Aquela mulher seria o amor de sua vida, sonhou como os românticos que insistem em não amadurecer, e aguar os olhos por qualquer grande bobagem lembrada. Mas isso era um segredo dele, ao mesmo tempo que sua força mais poderosa, o romantismo entregue, dedicado de um homem.

Por mais de 10 segundos, que pareceram vários minutos, ambos fitaram-se como que apaixonados, em pé, num esquina. Ele perdeu a voz, ela perdeu a própria atenção; queria indagar o que ele queria, mas nem isso conseguia. Amor à primeira vista seria um clichê muito banal para aquela mulher para lá de bem resolvida. Mas aí havia o paradoxo nela: de tão liberal e possível ela não afastava de si a hipótese extrema do amor à primeira vista, só que não aceitava viver a experiência; piegas por essência, infantil por credo, impossível por finalidade, primária por desejo.

Não podia ser, não existe assim, o destino não é um conto criado, sussurrava sua razão matemática tão íntima e menstrual, enquanto seu coração menininha-grande-mulher, traindo-a, implorava louco aos céus por querer que fosse exatamente assim. Após um silêncio que pareceu demorar meses, Philippe falou: - um beijo. E ela imediatamente reagiu, num sarcasmo amoroso genial, certa de que ele a entenderia: só se fosse o último da vida de nós dois e o altar fosse o próximo passo. Ele, pasmado, não acreditava em como ela brincava com o destino, devassa, mundana e linda, agora uma princesa certamente virgem, tamanha a sua inteligência. Ele disse: - Manoela! Ela respondeu, será menino o nosso filho e se chamará João. Ele não conseguia mais fugir daquele jogo genial, daquela inteligência devassa e viciante, aguda e entregue, que transformava sua já dona em uma mulher ainda muito mais linda. Quando ele então tentou a obviedade para ver no que daria: - não sei nem o seu nome, falei um beijo e você respondeu com o altar, falei um nome supondo-o seu e você disse que o nosso filho seria menino; você decididamente não é louca! Só precisa me pedir em casamento. E ela sorrindo carinhosamente respondeu: não, eu amo perdidamente. Ela não era uma mulher, agora era uma rainha.

A sinceridade era derramada numa esquina anônima, entre pessoas comuns, tolas e apressadas que cismam em trabalhar sem saber muito bem para quê. O amor circulava irresponsavelmente entre eles, talvez mais rápido que a heroína na circulação sanguínea, totalmente dominante no momento da liberação da veia. Não nessa exageração de amor um desejo vulgar, o sexo ficou esquecido, a moeda era um carinho suave e um pavor declarado em ambos por não viverem um amor. Aí estava o pacto. Isso era possível. De um simples olhar. Raro, raríssimo, mas possível. Ela invadiu-o: vamos nos apaixonar sem saber nossos nomes? E ele: -não, nós vamos nos casar. Ela pela primeira vez gargalhou aberta e barulhentamente, como só as grandes e poderosas mulheres conseguem fazer. - Você não serve para mim, soou na voz feminina da conversa. Ao que ele prontamente respondeu: temeu minha inteligência não é? E ela concordou imediatamente com um riso de boca fechada como quem fez uma travessura e foi descoberta. Sua graça era infinita, apenas um superproduto da sua genialidade.

O café era um hábito para Philippe e foi na entrada do bar, por movimentos daquela mulher ainda sem nome que ele confirmou o amor. Atordoado perguntou qual seria a identificação dela. Ouviu um açucarado: - Christine, com o erre forçado dos franceses. Ele imediatamente destacou: -um nome francês! Os olhares eram embriagados de tanta emoção, as intenções já conhecidas, os desejos relevados, havia confiança naquela situação, uma estranha amizade se solidificava sem qualquer porquê. Philippe disse: - nós não podemos nos perder. Quase antes de ele terminar a frase ouviu em resposta: - nunca vou lhe deixar. Era impressionante ou totalmente estranho o filosofar transgressivo de ambos em complementaridade e junção. Aquilo não estava acontecendo, era o descontexto de um texto que não se escreve, era o reencontro de um encontro que nunca houve. Não era mais atração, era um confiar, um querer bem e uma descoberta. A palavra era um só: doçura e encantamento mútuos. Aquela adulta Christine e totalmente proprietária do seu destino fazia questão de se entregar, não por uma atração, mas pela circularidade da inteligência delicada que se construía na relação. A admiração a Philippe não se cansava. Ele se apresentou e se identificou.

Perguntou como seria um beijo, e ela respondeu: - de hoje a 6 dias você vai saber, até lá estará “em provas” comigo, vamos discutir inúmeras possibilidades e atuações, inclusive a do beijo. Ele se viu refém. Convidou-a a passar os 6 dias em sua casa, dormindo juntos e agarrados numa cama de solteiro, sem um tocar no outro. Ela disse que adoraria, mas precisava viajar naquele dia à noite. Começaram a espremer os minutos, não existia mais cidade, rua, gente, café, garçonete ou celular. Os olhos não se perdiam. Philippe não era um homem bonito, mas seu romantismo e entrega acessavam aquela mulher deslumbrante.

Ambos viam-se carentes, sofridos pelo consumo do sexo fácil, dos encontros produzidos sem olhar, das noites preparadas para se dar bem. Não havia olhares em ambas as vidas, apenas ali nasceu o olhar. Ele interrompeu um amoroso silêncio e perguntou: - você me daria um beijo? O questionamento saído do nada não surpreendia Christine, nada a deixava surpresa. Sua resposta veio rápido: - mas eu já lhe beijei tanto nesse tempo que estamos aqui, em sonho; você quer mais um? Havia mais inteligência nela do que mulher, e isso a deixava tenebrosamente linda, ornada por longos cabelos escuros e um olhar mais que vivo, energizado e reto. Philippe pediu um café e um conhaque, Christine chamou a garçonete e ordenou um atendimento idêntico, frisando: - da mesma marca e na mesma quantidade que a senhorita trouxer para ele, precisa ser exatamente idêntico, inclusive na quantidade e densidade! A garçonete sorriu encantada com a inusitada encomenda e quando serviu disse que podiam trocar à vontade porque, afinal, ambos os pedidos eram iguais. A gentileza de Philippe cedeu a primeira escolha, ela se encantou.

Não havia horário de verão e a tarde era gentil com o anoitecer, cedia espaço rápido e saía correndo para se refazer, cansada de tantos que insistem em viver de dia, usando-a até a última gota de claridade. Após 3 doses mantidamente idênticas de bebida o olhar deles revelou um amor diverso, compromissável, e um silêncio alvissareiro. Os rostos foram se aproximando em quietude, lentamente, até ficar a milímetros um do outro, e ouvindo as respirações, como se quisessem conhecer cheiros, ritmos, gostos e hálitos. Tudo agradou e se tornou mais emocionante. Temiam o beijar, mas havia invencibilidade ali. Ele veio, caudaloso como um gozar litral, reservado, lento, ininterrupto, total e suculento, escondido numa quina da sala do café, como se canto de sala fosse tapume. Foi só entre eles, só para eles, secretamente escandaloso e denso em sabor e sensações. As bocas buscavam mais e mais se encaixar e elas próprias se incumbiam de tapar o movimento ritmado das línguas que se mostravam largas e abertas, desapressadas nos toques inteiros, prazerosas, íntimos, entregues às mordidas do outro como que querendo serem prendidas para sempre, permitindo sons de respiração quase que inaudíveis para eles próprios, havia uma darwiniana produção de saliva lubrificando o beijar e enganando a evolução como se a reprodução fosse o próximo passo, mas eles brincavam de felicidade com as bocas naquele beijar único que desafiava o tempo e um pudor retrógrado qualquer como se a busca por um clitóris beijal fosse um delito, como se beijar como se come uma fruta aguada, mas não gulosamente e com a paciência própria do amor, fosse o escândalo obsceno que não podia ser revelado. Aquele beijo assistido por outrem seria um escândalo, filmado seria uma grande história de amor. As bocas não se tocavam apenas, prometiam amor eterno após aquilo que chamaram de “nosso beijo”.

Mas o beijo era um mau agouro e eles o pressentiram por tanto amor que sentiram naquele beijar. Foi como se não quisessem que tivesse dado tanto certo, porque a perda ser-lhes-ia fatal. Certamente por isso insistiram tanto em marcar território em um único e possível beijar, com cheiros, sabores, sentimentos, ruídos, paladares e sensações. O desastre é silencioso e imundo. Sua chegada às vezes é suave. Como já lamentou Hölderlin, que estranha mania essa de Deus de separar as pessoas que foram tocadas pelo amor. Não havia um Deus confiável ali, absolutamente, ou se tivesse havido algum, ele começara a dar as costas, numa traição infame e antropofagicamente agnóstica do próprio Deus para com o amor, invejoso por nunca ter dado um beijo assim.

Christine se levantou suavemente e disse baixo: - vou embora. Não precisava razão. Eles não combinaram nenhuma razão, para nada. Philippe apenas aceitou quieto e sábio. Uma Christine gentil anunciou: um dia nos encontraremos de novo, não é possível que um amor assim possa acabar. Pegou uma nota de maior valor que havia no país, pôs sobre a mesa e delicadamente se despediu. Pediu que ele se mantivesse sentado. Uma lágrima tentou marcar o rosto de Philippe, mas lágrimas não marcam. Um aperto no peito prometeu lhe causar um dano futuro, esse sim, a saudade. A percepção da definitividade da despedida lhe cortou a realidade, lentamente. Ele tentou dar o telefone, num desespero de menino, ela recusou. Sussurrou um endereço na cidade vizinha e contou que vez em quando andava por lá. Saiu com a certeza de que ele a encontraria, e a João. Naquele dia o conceito de amor mudou para nunca mais voltar a ser o mesmo. Jean Menezes de Aguiar.

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