[Constituição de 1988. Democracia. Sociedade. Princípios constitucionais. Dívida do Estado.]
O grande jurista Fábio Konder Comparato, no livro Muda Brasil - uma Constituição para o desenvolvimento democrático, 1986, ensina que a Constituição constitui “o desenho do que a sociedade deve ser – e não o retrato da sociedade tal qual existe, em determinado momento histórico” afirmando ainda que “é imprescindível que esse ideal apareça, claramente, aos olhos de todos. O que se pretende com uma nova Constituição? Quais as mudanças desejadas, em relação à situação vigente, e por que razão?”. Passados mais de 20 anos da Constituição, não há um único estudioso em direito constitucional no país que pudesse “entender” que a Constituição da República de 1988 não quisesse uma sociedade efetivamente democrática, um Estado honesto que garantisse o bem de todos. O desenho constitucional foi feito, conforme ensina Comparato. A sociedade conseguiu, em curto espaço de tempo extirpar os ranços ditatoriais, assim não exibe mais qualquer saudade ou resto mental ou psicossocial de ditadura. Parece não haver dúvidas de que saudosos de um regime ditatorial foram definitivamente calados e devidamente desmoralizados com o sabor delicioso da democracia, um sentido de viver em sociedade em que todos podem falar, reclamar e exigir, sem medos de serem presos ou desaparecer.
Já pelo lado do Estado, o desenho constitucional elaborado pela Carta de 1988 não conseguiu moralizar a estrutura de “uso” de cargos públicos, principalmente os de cargos de direção. O antropólogo Roberto da Matta diz que a corrupção é do tempo do Império e a vocação do Estado brasileiro sempre foi para esses desvios. A violência do Estado, marca indelével de uma ditadura, foi habilmente substituída por formas velhacas ou mesmo hipertecnologizadas de corrupção e apropriação do dinheiro público, além do uso da máquina para si própria – os ocupantes de cargos-. Na ditadura se roubou muito, todos sabem – algumas pontes Rio-Niteroi foram embolsadas com a que se vê erguida na Baia da Guanabara -, mas parece que, com o volume surrupiado atualmente, há uma diferença totalmente nítida entre a corrupção de outrora e a atual. Sociologicamente, o Brasil abriu mão de ter um Estado violento para ter um Estado essencialmente desonesto e não preocupado com os princípios constitucionais. Aqui um grande problema, o não atendimento a princípios constitucionais. De todos esses princípios (Valor social do trabalho; Valor social da livre iniciativa; Livre concorrência; Repressão às infrações contra a ordem econômica; Construção duma sociedade justa, livre e solidária; Garantia do desenvolvimento nacional; Erradicação da pobreza e da marginalização; Redução das desigualdades sociais e regionais; Liberdade de associação profissional ou sindical; Garantia do direito de greve; Ditames da justiça social; Soberania nacional; Propriedade e sua função social; Poder de polícia; Defesa do consumidor; Defesa do meio ambiente; Busca do pleno emprego; Tratamento favorecido para empresas de pequeno porte; Integração do mercado interno ao patrimônio nacional), há um que deixei para citar em especial, é o mais importante: o princípio da Dignidade da Pessoa Humana. E sê-lo-á, além de porque atendente a um moderno constitucionalismo, porque há nele uma imediatidade por dívida do Estado para com o cidadão. Este ponto é muito grave.
A Constituição da República de 1988 sabia da dívida de décadas (ou séculos) para com a sociedade brasileira e veio no sentido efetivo de pagá-la. Repare-se que Sarney e Collor dispararam que o país ficaria ingovernável, e Ulisses Guimarães saudou o Constituição como uma vitória do povo, a Constituição Cidadã. Mas nesse meio de caminho havia como trava, blindagem ou contenção à perfectibilização das garantias e princípios constitucionais, principalmente o da dignidade da pessoa humana, as aves de rapina do Poder Público brasileiro, perdoe-me fauna, constituídas exatamente pelos gestores públicos, de todos os lugares e níveis. Privilégios, regalias e ganhos adicionais, além do sistema corrupcional precisavam ser mantidos, e foram. Assim, deu-se uma larga disjunção entre o previsto, desenhado ou posto em prática, em termos formais pela Constituição escrita, e, noutra ponta, uma prática experimentada e vivida pela sociedade, em que a cada mês de 2011 um ministro de Estado – com toda uma estrutura obviamente comprometida – é posto em xeque por problema viciosamente de corrupção. Cessam a truculência, a violência e a ameaça como formas de opressão. Entram a delicadeza e a gentileza no discurso, recheadas de frases politicamente corretas para encobrir canetadas desviantes sobre o dinheiro da sociedade.
Miguel Reale, no livro A ordem econômica na Constituição de 1988 ensina que “Praticam, pois, um grande erro aqueles que não contribuem com uma interpretação objetiva e serena do texto constitucional, assumindo atitude hostil ou depreciativa perante o Estatuto de 1988.” Assim, cabe na Constituição uma interpretação jurídica perfeita e objetiva, correta e corretiva para as mazelas da corrupção, não se precisando falar em nova Constituição para se “melhorar” o baixo nível do Poder Público com sua endêmica apropriação do dinheiro público. Isso seria uma esdruxularia política, um neogolpe de Estado. Como ensina Eros Grau, "não se deve interpretar a Constituição em tiras", não havendo ali contradições e burrices como alguns sensacionalistas gostam de “descobrir”. Não faltam leis no Brasil, mas uma sociedade que saiba cobrar sua própria dívida histórica. Se a sociedade livrou-se de mentalidade ditatorial a curto prazo, não aprendeu, todavia, neste mesmo prazo, a exigir os direitos. E exigir direitos não é essa fumaça consumerista de Juizados Especiais em que "se dá" ao cidadão "consumidor" (veja isso!) o direito de reclamar seus sagrados "minutos" contra a empresa de telefonia nos tais Juizados e ele, por isso, se vê como cidadão.Exigir direitos aqui é a estruturação de um Estado condizente com a principiologia constitucional, prima facie a de respeitar efetivamente a dignidade da pessoa humana no sentido de uma vida segura e digna, distribuindo corretamente o dinheiro que pertence ao povo, arrecadado nessa absurda ciranda tributária brasileira.
A Constituição de 1988 deu amplas armas à sociedade para cobrança dessa dívida e, a cada semana (agora semana) um novo escândalo é detonado em um dos ministérios ou com um gestor público. Quando escrevo este artigo, o prefeito de São Paulo se vê com seus bens indisponíveis, sob alegação de fraude em concorrência de empresa de trânsito envolvendo cifra de bilhão de reais. Essa promiscuidade não cessa e faz aumentar a dívida do Estado para com a sociedade enquanto ocupantes com esses vezos mantiverem seus postos, cargos, poderes para nomear etc. A principiologia constitucional indicada acima visa toda ela à proteção da sociedade democrática e livre, e do cidadão. A velhice continua desamparada por um Estado agora pós-moderno que só se preocupa com uma juventude vitoriosa e níveis internacionais de competição, como se o bem público fosse um núcleo pertencente ao chamado mundo corporativo e que tivesse que dar lucro ao Estado, um lucro que não retorna à sociedade. A Constituição não quis um Estado pós-moderno como se compuseram as empresas e o mundo corporativo. Certos historicismos e tradicionalismos não são imprestáveis – nem toda tradição é filosoficamente risível –. Não há qualquer ode à estatalização socializante, mas o bem público continua sendo do povo. Muito mais que mera retórica, essa pertença e visão devem fazer com o que a sociedade exija sua dívida, e o Estado não ache ruim, não se insurja e não proíba a cobrança, uma que diz respeito à dignidade da pessoa humana com moradia, saúde, descanso, segurança e padrões condizentes para com o que a Constituição desenhou para todos. Jean Menezes de Aguiar.
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