No caso, antropofagia.
Um
dos traços do consumismo é exacerbar sentidos e sentimentos, inclusive
apressando-os. Há que se emagrecer em 8 dias. Deixar de ser careca em 25.
Aprender inglês em 1 mês. Cursar o segundo grau em 3. Ter a melhor ereção do
mundo com uma pílula, mesmo que se tenha 16 anos de idade. Essas mentiras são
apenas um dos valores visíveis do consumismo e seu ritmo. Mas a sociedade
adotou tais valores silenciosamente, num modo tácito de “agora é assim”.
Daí,
a simples atividade de torcer por um time precisa ser transformada em sofrer e
jurar fidelidade, acima, bem acima da esposa. Crianças são, nesse universo,
ensinadas a amar os times de seus pais, tolhendo-lhes a escolha, obviamente,
mas de forma autoritária. Há o amor aos pais e o amor ao time no mesmo patamar.
Em religião se chama isso de fundamentalismo, a negação do conhecimento
racional em nome de um dogma radical impensado. No esporte, chamar-se-á de
fanatismo.
Curioso
que fanatismo, antigamente, era algo ruim, ligado a um distúrbio de
comportamento. Mas com o consumismo atual, passa a ser um valor enaltecido. Nessa
engrenagem social, se o torcedor não for fanático não é um torcedor
verdadeiro. Se o jogador apenas vibrar e
não se dirigir à torcida mordendo o escudo do time que fica no peito já
acessível à boca para ser mordido, como sinal de adoração, não “vestiu a
camisa”. Já as finais, todas, são “dramáááticas”, conforme um Galvão “esperto”
Bueno que ajuda a vender o drama e o derradeiro, fatores compositivos do
fanatismo.
É
claro que sempre haverá quem lucre com o fanatismo. Sim, lucrar dinheiro mesmo.
O fanatismo gera um tipo de devoção e presença garantida em estádios. Inclusive
em continentes inimagináveis. Pessoas “pobres” saem do Brasil para assistir a um
jogo no Japão. É como já se cantou que o sambista se preparava o ano inteiro
para o desfile na Sapucaí, inclusive economizando dinheiro para a fantasia. Mas
a poesia do Carnaval não chegou a gerar o fanatismo da morte.
Esta
semana o mundo futebolístico foi sacodido pela morte de um garoto de 14 anos de
idade atingido por um petardo incendiário de mão, lançado intencionalmente por
um torcedor brasileiro. Justamente o time que foi campeão mundial tem, logo a
seguir, o desastre de sua torcida, a mais oficial, e fanática, causando a morte
de um menino. Dirão conservadores de plantão que não foi “o time” que matou,
que não foi “a torcida” que matou. Tolos legalistas empunharão a teoria de que
a pena não passa da pessoa do delinquente, recitando normas constitucionais
totalmente ociosas quando se pensa no jovenzinho morto.
Se
essa responsabilidade é cirurgicamente identificada na pessoa do lançador do
petardo, porque então o time foi condenado a ficar todo o campeonato sem a
presença de sua torcida? Será que a Conmebol “enlouqueceu”? Será que os
julgadores do caso são uns tontos? Há um conceito aí que entrou em cena: a
exemplariedade.
A
exemplariedade é um conceito cada vez mais necessário num mundo consumista. Uma
punição será exemplar quando a um fato de gravidade 1, ela venha sobre tônus 3
ou 5. Ou seja, com uma resposta mais elevada do que o fato originário. Essa
gradação para o pior é diferente da que se vê, por exemplo, na legítima defesa.
A uma agressão injusta de um bandido não se pode exigir, no momento do
desespero, uma reação totalmente equilibrada do homem de bem. Daí se permite
que este homem de bem mate o agressor ainda quando o agressor não fosse
perpetrar um homicício, mas somente um roubo.
No
caso da Conmebol é exatamente o inverso. Os juízes tiveram tempo para refletir
e calcular a pena. A dosimetria dela levou em consideração esse efeito
exemplar. Quis-se uma resposta severa e que entrasse para a história, afinal,
tratava-se da morte de um jovem criminosamente feita em estádio de futebol, na
condição de mero torcedor, não de um ladrão. Ainda que se estime que a própria
entidade possa não ter toda a força para “manter” a punição. Mas isso já é
outra questão.
Todo
o futebol deveria se ver de luto com a bestialidade perpetrada. Medidas
severíssimas deveriam ser tomadas e isso sem qualquer cunho autoritário ou
conservador. São Paulo já vive o absurdo de não poder ter bandeiras em torcidas
porque os boçais se matam, se furam. É patético. E o Estado invariavelmente
letárgico, o máximo que consegue responder é: o Ministério Público vai
investigar. Essa frase já virou um anedotário frente a crimes e truculências
empreendidas por torcidas.
O
pior de tudo é que passou a não ser somente uma torcida com esse padrão. Agora,
como o fanatismo se tornou a regra, times outrora considerados de “elite”
começam a ter seus núcleos de violência, ódios futebolísticos rácicos e
étnicos, cortes de cabelos e vestimentas nazistas e outros adereços próprios do
esdrúxulo e do boçal.
Ficar
o time aí, da torcida incontível que quebra aeroporto e precisa ser fiscalizada
pelo serviço secreto japonês para que não afete a paz e a cultura nipônicas por
todo um campeonato sem sua torcida pode ser um marco. Um triste marco, mas
necessário. É um grande time, fez uma ótima e bela campanha em campo. Mas os
times passaram a ser bastante responsáveis pela idolatria cega e
fundamentalista de seus torcedores. Se não fosse assim, pela morte do garoto, o
time não seria punido como foi. O mais triste é que isso se dá imediatamente
após uma conquista do mundo tão bonita. O futebol precisa se reler, se rever,
sob pena de campos se tornarem, sim, “arenas” para enfrentamentos de morte.
Marmanjos
que se orgulham, estranhamente, de se dizer “loucos” têm o direito de ser o que
quiserem. E a polícia, o Estado, a sociedade de bem têm também o direito de
“conter” doentes e desestruturados violentos, como vigaristas e criminosos. Ou
em internações como medidas de segurança ou com a boa e velha penitenciária. Só
dependerá do grau de violência e boçalidade verificada. Agora todo mundo da
“torcida” está assustado. Mas o menino morreu. Jean Menezes de Aguiar.
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