quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Direito pela TV

Jurista alemão prof. Claus Roxin

Artigo Publicado nos jornais O DIA SP e O ANÁPOLIS - 22.nov.12


                O Supremo Tribunal Federal é, salvo engano, a única corte judicial do planeta a se mostrar, ou se expor, pela TV em julgamento ao vivo. Chamam isso de “transparência”. Pois é, modismos são assim. A sociedade cobra, exige e quer usar até o osso. Pode ser. Mas essas demonstrações descaradamente midiáticas têm efeitos. Talvez hoje haja juízes do Supremo com um gosto ruim na boca do tipo o tiro saiu pela culatra. Ou, que monstro criamos?

O STF não se tornou sociologicamente pop, como talvez supusessem. Foi “apropriado” de forma mundana e legítima por uma sociedade sedenta, dessas que se deixar, lincha o suspeito. Que somos bestiais assim já sabemos. Esse STF também precisa se preparar para, então e quando esta mesma sociedade quiser, ser linchado. Chamar isso de transparência talvez seja um preço alto, não por uma suposta intocabilidade da corte, mas pela ameaça ao Direito que pode representar. Aí o problema.

Imagine-se, em nome da mesma “transparência”, transmitirem-se, de hospitais públicos, cirurgias ao vivo para a população. Será que a Medicina também “pública” o admitiria? Publicidade jurídica, processual, prevista na Constituição e Códigos de Processo é uma coisa, TV é outra.

            Dois efeitos dessa tal transparência se mostraram venenosos. Efeitos ao mesmo tempo sociologicamente interessantes e juridicamente nevrálgicos.

O primeiro é a possibilidade de os julgamentos televisionados representarem uma floresta de árvores para a fogueira faminta da imprensa. Com a habilidade, técnica e uma pitada óbvia de sensacionalismo, a grande imprensa & jornalões facilmente transformam simples debates em crises institucionais; burocráticas recusas de depoimento de um réu em desrespeito à Justiça; presunção constitucional de inocência em afronta ao Judiciário, e vendem isso.

                É claro que o viés midiático dos julgamentos televisionados fornece uma lenha não apenas ao povo em geral que “lerá” de forma simples o fato social transmitido. Quem receberá esse mesmo fato será o jornalista, profissional que buscará em entrelinhas, coisas que não foram ditas, ou, pior, que ele imagina que não o foram. Nesta receita, entretanto, entra um ingrediente dos mais complexos que é o próprio Direito. Muitos sem um “mínimo” de estudo no Direito (para não falar “formação”) não conseguem distinguir denúncia ou recebimento, substantivos, com denúncia e recebimento da denúncia, atos processuais. Como outros também “querem” se horrorizar com o direito do réu de permanecer calado.

                Haverá daí informações imprecisas no campo do Direito, equívocos sendo difundidos. Ou por ignorância jurídica ou, o que é pior, por descarada ideologia. Não são poucos os intelectuais e pensadores seniores que vêm trabalhando com a hipótese de a mídia ter conseguido forçar o STF a condenar no Mensalão.

O segundo nefasto efeito se dá por uma apreensão do Direito de forma popular e atécnica. Não há aqui qualquer bobajada de “reserva de mercado”. A febre das faculdades de Direito no país chegou a mais de 1000; só em SP são inacreditáveis 200. Ou seja, qualquer um pode fazer um cursinho ou um cursão. Ou estudar a sério e não difundir bobagens. Mas parece que a difusão não se dá pelo tônus da pura ignorância. O Direito complexo, epistemológico, científico, interpretado, zetético, principiologizado é sobremaneira difícil mesmo a profissionais com pouco estudo. As salas de aula de pós-graduação o comprovam. Que se dirá de pessoas alheias a essas técnicas com detalhes tão profundos?

                O triste episódio recente Folha de São Paulo x Professor Claus Roxin bem o demonstra. O famoso mestre alemão veio ao Rio para receber o título de doutor honoris causa da Universidade Gama Filho, quando foi entrevistado. Suas palavras foram tão deturpadas na imprensa, em falsos e proveitosos contextos sobre o Mensalão, que ele precisou mandar da Alemanha uma nota de esclarecimento, em 18/11/2012. Ou seja, uma vergonha brasileira com um velho professor ilustre que jamais quis se intrometer em assuntos do STF, Mensalão e Zé Dirceu e turma.

                Parece ter se tornado hábito essa “apreensão” do Direito pela imprensa, sendo o saldo lastimável. O pior é que do jeito que é apreendido, é difundido. O repórter Marcelo Rezende, por exemplo, pugna todo dia em seu programa pela pena de morte e prisão perpétua. Só cabe isso por meio de uma nova Constituição, hipótese tão absurda que parece golpe, uma palavra odiosa.

                Sempre comparei Direito à Medicina. São as duas maiores bibliotecas existentes no mundo. O Brasil chegou a ter um jurista como Pontes de Miranda que escreveu uma coleção com 61 volumes e outras várias com 15, chegando a ser considerado equivocadamente por argentinos como pessoa jurídica, de tanto que produzia. Aí qualquer um por aí pega isso tudo e “opina”, leve e solto.

                Uma coisa precisa ser repetida, nessa onda de sociedade pós-moderna à qual parece se poder tudo. Não se labora aqui com qualquer ideia de reserva de mercado. Qualquer um pode legítima e democraticamente se “apropriar” do conhecimento jurídico. Basta estudar. Não há necessidade de cursos ou formação. Galileu fugiu da faculdade e era um gênio. Mas há que se ser um gênio ou, pelo menos, não dizer bobagens de uma área específica, como se tem lido e ouvido todo dia no caso do Mensalão.

                 A responsabilidade de quem possui “palavra pública”, quem produz para a massa, passa por duas vertentes: ou ignorância ou ideologia. As grandes bobagens, estultices ou obscenidades ideológicas são até aceitas, afinal quis-se assim, e o agente assume. Mas isso não pode estar camuflado de conhecimento técnico, objetivo e imparcial. O filósofo Paul Feyerabend dizia que a razão é apenas uma das agências e há outras, como a bruxaria e a crendice. Mas foi voz isolada. Será que no Brasil queremos uma sociedade enganada por difusões malandras, ideológicas e safadas, e ainda mais travestidas de “jurídicas”? Este não é o Direito que ensinamos, nem no básico nem em cursos avançados.  Jean Menezes de Aguiar.

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