Não é montagem: é um Mirage na praça. Isto é Anápolis.
Artigo publicado nos jornais O DIA SP e O ANÁPOLIS(GO) - 18.out.2012
Números e análises na cidade de Anápolis, Goiás, da eleição havida semana passada podem permitir leituras sociais com surpresas ou paradoxos interessantes para todo o país. Leituras são interpretações sempre válidas, sem a tirania cartesiana do certo e do errado. Alguns fatores autorizam determinada leitura e por isso ela se torna legítima. Há uma lógica nisso e para a lógica só interessa a relação funcional entre as premissas e conclusões, não as verdades envolvidas. Cada observador social pode chegar a resultados lógicos diferentes, e todos eles legítimos.
O grande gancho a ser explorado da eleição de Anápolis é o inusitado percentual de 88,4% de votos para reeleição do prefeito, um recorde nacional. E mais, em época de Mensalão, um prefeito do PT. O mesmo que na primeira eleição abriu os trabalhos com míseros 3% nas pesquisas. Há leituras aí.
Uma primeira interpretação que contraria a alguns simplistas de plantão é o fato de o PT ser um partido de esquerda. Não se precisa estudar Norberto Bobbio, Direita e esquerda, para se concluir que os conceitos de direita e esquerda não morreram. Ainda que possam ter sido razoável e historicamente alterados. Nem se diz que esquerdistas seriam jacobinos e direitistas seriam reacionários. O fato é que o PT jamais foi um partido “de direita”. Isso ofenderia tanto ao povo da esquerda quanto ao da direita. E uma “conclusão” já sairia daí, desses 88,4%: a de que, “então”, a sociedade de Anápolis é “de esquerda”. Agora posso ter comprado briga com a cidade inteira.
João Marcos Feitosa, em trabalho publicado na internet, intitulado A influência evangélica na sociedade Anapolina, aponta para uma “tradição inventada de que Anápolis seria a cidade mais evangélica do Brasil”. Mas onde há fumaça há fogo e a quantidade de igrejas por metro quadrado em Anápolis parece não deixar mentir essa tal tradição. Aí, pula-se para a reportagem da revista Isto É, 1.748, intitulada Religião e voto: “Os partidos escolhidos pelos políticos evangélicos são, em sua imensa maioria, os de direita”, e “A comunidade evangélica brasileira está longe de ser de esquerda”. O tônus conservador se revela, corretamente, com toda nitidez na reportagem.
Se Anápolis é tão evangélica assim e se a dita religião é “própria” dos partidos de direita, remanesce um paradoxo interessante de 88% dessa sociedade ter optado por um prefeito do PT.
Haverá uma quadra teórica aí. Ou 1) esta sociedade teria “se tornado” de esquerda, o que é bastante improvável; ou 2) o conceito de esquerda para esta sociedade não foi tão ideologicamente ofensivo ou repugnante a ponto de impedir o voto na esquerda; ou 3) a carga teórica direita-esquerda não importou para esta sociedade; ou 4) a carga não existe mais em nenhum lugar, consideradas as sociedades em geral como consumistas que só querem resultados imediatos, pragmáticos, utilitarísticos, sem ideologias e substratos culturais profundos.
Ainda, é claro que a gestão anterior do prefeito reeleito considerada de sucesso por quase 90% do eleitorado é um ponto primeiro e imensamente importante. E aqui outro embate teórico: a gestão de sucesso versus a ideologia do gestor, no caso de esquerda. Mesmo sendo Anápolis, presumivelmente, de direita –admita-se a “classificação” genérica –, a sociedade não titubeou, “capitulou” a uma gestão boa e deu de ombros a discussões “teóricas” de direita e esquerda. Disse em alto e bom tom: às favas com a ideologia. Falta esclarecer se isso poderia ter querido dizer uma “mudança” do tipo quem “era” de direita passou a ser de esquerda. Nada é tão direto assim, mas que é instigante não há dúvida.
No caso de prefeitos e vereadores avultam os reflexos imediatos no asfalto das ruas; na limpeza urbana; na construção de praças de embelezamento, esporte e lazer nos bairros de todos; nos semáforos funcionando em cruzamentos para evitar acidentes; numa guarda municipal ativa e presente. Note-se que isso tudo é direito do povo, jamais é favor do gestor público. É claro que nem tudo isso é atendido em Anápolis. Não se está a dizer que a cidade possa ser um “modelo” de impecabilidade e sem problemas. Infelizmente não é. Mas o fato é a população votou olhando certas mudanças e isso não foi um imediatismo criticável, afinal quem vai cuidar dessas coisas na porta de casa de cada um?
Mesmo sob um feitio conservador – como de resto é bem nítido no país todo, que fique bem claro –, os bolsões quantitativos de pobreza em Anápolis reelegeram o prefeito maciçamente. Mas para esse percentual tão alto é claro que também a chamada classe média (que passou a envolver a alta) entrou na dança. E parece que todos estão felizes.
O prefeito pode ter matado dois coelhos com uma cajadada só: agradado à parcela efetivamente desfavorecida e ao mesmo tempo a classe média, com embelezamentos e funcionalidades na cidade. Daí pode ter advindo o “às favas com a balela de direita e esquerda”. Se é que isso chegou a ocupar as cabeças votantes.
Com esses 88,4% Anápolis deu inveja a muito marmanjo político velho de guerra em cidades vaidosamente tidas como uber urbanas e sofisticadas. Mas também mostrou ao país que é possível “ser feliz”. Se a unanimidade é burra, como teorizava Nelson Rodrigues, a coesão pode ser genial, e mesmo feliz. Não se chega a uma coesão de reeleição em níveis de 88,4% com enganação, mentira e apenas publicidade de candidato. Há uma parceria invejável entre gestor e sociedade. Politólogos vão estudar o fenômeno Anápolis seriamente. Mais, um fenômeno bastante difícil de se reproduzir, mas desejável que houvesse sempre. Daí, as lições valiosas.
O problema classificatório de direita e esquerda, que parece ocioso ou teoricamente fútil, nas sociedades da pressa, do consumismo, do resultado e da falta de ética, envolve contornos graves. Parece haver um certo “disfarce” com esse discurso, mas observadores atentos distinguem facilmente quem é quem. Para alegria dos lulistas ou desespero dos contrários, Lula já chamou esse recordista Antonio Gomide para um “conversa”. Tomara que Anápolis não perca seu prefeito para um ministeriozinho aí qualquer.
A revolução tão esperada pode começar no interior e não nas cidades tidas como “politizadas”. Um modelo brasileiro poderia denotar preocupações com atendimento verdadeiro ao social, como parece que já há. Bem diferente do mero slogan de Zé Sarney em 1985 “tudo pelo social”. Agradar a gregos e troianos sempre foi uma charada. Parece que o nosso alcaide aí descobriu uma fórmula. Agora é a sociedade manter viva a cobrança e a parceria. E o resto do país se interessar por saber como isso foi conseguido. Jean Menezes de Aguiar.
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