Imagem provisória. depois virá uma de Claudio.
Pelo dia do Professor.
Este texto é uma homenagem a um grande professor de piano que tive, José
Claudio das Neves (UFRJ e Teatro Municipal do RJ). Fui seu único aluno
particular, em razão da longa amizade dele com meu pai desde os tempos de
solteiro, quando meu pai ainda era músico. Claudio nunca cobrou um tostão pelos
anos de aulas. Era pura amizade. Uma tia tentou que ele desse aula a um primo
meu, ele gentilmente negou. Essse grande “rabugento”, inigualável admirador do
uísque, meio ateu, inteligentíssimo e estudioso de primeira hora, contribuiu para a
formação do meu caráter como um inesquecível professor.
Meus pais me forçaram
a aprender piano, entendiam que este aprendizado era importante. Graças ao
piano, depois trabalhando profissionalmente como músico pude conhecer muitos
países. Só posso agradecer a meus pais por terem sido “autoritários” comigo, como
diriam pais idiotas dessa atualidade viadinha.
Comecei a estudar
piano com 4 ou 5 anos de idade e passei por várias professoras, além dos cursos
de iniciação na UFRJ, no Passeio Público, RJ. Com um razoável ouvido, conseguia
“enganar” às bondosas professoras em leitura e teoria musicais e reproduzir as
peças de ouvido. Ou elas se deixavam enganar por carinho. Como eu poderia, por
exemplo, driblar uma Deusnice Guerra, professora que em sua sala no apartamento
em Ipanema tinha não apenas um, mas dois pianos de cauda? Um para os simples
mortais, seus alunos, e outro que ela usava para seus concertos. Quando eu
chegava com minha mãe para aula, ficávamos do lado de fora ouvindo boquiabertos
concertos e estudos explendorosos que ela imediatamente parava quando
entrávamos.
Passei por diversas
professoras queridas. Uma delas, Aida Erlich veio a mim, eu já adulto, certa
vez, num show em que eu acompanhava Eliana Pittman, no Hotel Sheraton, no Rio,
e emocionada me abraçou muito e disse coisas lindas sobre como eu estava
tocando que, claro, ela era uma das responsáveis.
Aí topei com a muralha
musical: Claudio, o velho amigo de meu pai. Claudio era violinista por formação
(olha que encrenca), depois pianista e percussionista, além de exímio vibrafonista.
Quanto mais uísque melhor tocava, dizia meu pai. Custei a entender
isso, mas depois adorei entender. Seu método como professor de apenas um aluno particular era meio
russo, ou seja, sério. Não tinha nada de “lúdico”, essa coisa safada muito
usada atualmente para enganar tolinhos. Pianistas russos têm uma piada para
quando o sujeito não executa muito bem alguma coisa no piano, dizem que é um
pianista que estuda “somente” 6 horas por dia, e não 8 ou 10. Claudio pensava
mais ou menos assim. Aí meus problemas começaram. Eu era um adolescente basicamente
farsante no piano e os anos que passei com Claudio, ou mudava eu, com 15 anos de
idade, ou ele, com 40. Como a corda sempre arrebenta no lado mais fraco, devo a
ele muito de o que aprendi.
Nas vezes que ia à minha
casa para jogar conversa fora com meu pai, de vez
em quando me tratava como “vagabundo” perante meu pai, num misto de carinho e
reprimenda, próprio de quem sabe que tem que trans-formar aquela pessoa tola e
tonta que custava a tomar jeito, eu. Também, antigamente, os pais não iam
querer “processar” um professor que chamasse seu filho de vagabundo.
Antigamente os pais acreditavam na verdade do professor, hoje acreditam na
mentira do filho mimado. Eu ficava mudo ouvindo ele tocar, com meu pai, com
acordes geniais e complexos, incapaz de atrapalhar. Cláudio espetacularmente
rabugento e intelectual não tinha tempo para um pirralho de 15 anos, certamente
chato, eu, que provavelmente só teria bobagens para falar e tentar me afirmar. Na
casa de meus pais, não dava muita conversa a mim. Vez em quando, dizia que eu
não seria um pianista, porque não levava a coisa a sério. Era de uma
austeridade de uma professora de balé clássico de Varsóvia.
Quando passei no exame
teórico e prático da Ordem dos Músicos do Brasil, em 1976, e obtive a carteira
de Músico Profissional, o que para mim era muito, Claudio fez uma cara misto de
desdém e obviedade. Eu tinha que passar, não havia hipótese de eu não ser
aprovado, primeiro porque ele houvera me preparado não para um mero exame apenas,
mas para ser músico. Ainda porque com o seu nível musical elevadíssimo,
certamente via aquela prova como um mero rito de passagem meio óbvio, ou bobo.
Aí fui para noite
carioca trabalhar como músico, ainda totalmente imaturo musicalmente. Graças
exclusivamente à boa vontade de grandes músicos, todos mais velhos, que me
aturaram por algum tempo. Depois comecei a viajar com artistas e saí da noite. Depois a noite acabou. Essas
referências históricas são importantes para mostrar o distanciamento que então
se deu entre mim e esse amado professor.
A vida de adulto
e profissional nos distanciou. Meu pai continuou grande amigo de Claudio, mas
eu mesmo tive que cuidar de mim e isso me ocupou muito. Sempre tinha
referências daquele Claudio querido, mas uma coisa e outra, acabava não encontrando-o.
Muitos e muitos anos depois, já em dezembro de 2000, uma cantora carioca Dayse
Baqui me chamou para um trabalho avulso numa casa noturna em frente ao Canecão,
no Rio. Eu tinha acabado de me mudar para São Paulo, bastante encantado com a
cidade paulista. A formação da banda que iria acompanhar Dayse era poderosa,
com músicos realmente bons, aceitei na hora e fui ao Rio.
Aí o marcante da
história. Meu pai e companheiro das todas as minhas noitadas de músico até sua
morte há um mês, é claro que compareceria nesse trabalho meu. Mas para
minha surpresa levou um convidado mais que especial, Claudio. Foi um dos
grandes presentes de meu pai.
Acho que Claudio
contava ali com 64 anos de idade, mas não perdera seu jeito de músico, era um
"senhor" mas quebrava essa característica. Usava uma pulseirinha e um anel no
dedo mindinho, coisa que conservadores idiotas diriam não se coadunar com a
idade. Aquilo me chamou muito a atenção, talvez porque eu sempre tenha usado bugigangas
assim. Foi como se eu tivesse tido uma resposta do meu professor: é
possível. Gostei muito de ver aquilo.
Claudio encontrou seu
aluno já homem feito, com marcas no rosto de uma vida modesta e dedicada ao
estudo, uma barba meio marxista e talvez o mesmo olhar de insegurança e respeito
diante do professor-deus. Tive a impressão de ele gostar de o que viu, num
primeiro momento. Eu, de minha parte, estava encantado e sabia que teria que
tocar para o professor, tarefa das mais difíceis, muito mais do que as apresentações
nacionais e internacionais. Ele foi muito gentil e amável, curioso e como um
pai querendo saber do filho distante que não vê há anos. Talvez nossa separação
aí beirasse coisa de 20 anos. São os absurdos da vida.
Ali estava o mesmo
Claudio, sério, mas já me dando atenção, certamente com seu uísque, suas piadas ácidas e inteligentes, seu quase-humor intelectual e uma mente ligeira e sacana.
Andava estudando cosmologia e cosmogonia, coisas que meu pai achava estranhas; eu adorei saber. Há poucos anos eu houvera sabido por meu pai que Claudio
finalmente experimentou maconha em casa. Encheu o cachimbo de erva e
fumou tudo de uma vez só. Capotou, claro. Disse que dormiu e achou uma merda. Revelou
que seguia fiel ao uísque. Adorei saber daquela experiência pessoal científica. Claudio era um cientista.
Esse professor sempre foi um
ícone para mim, quando “tirava” músicas no piano. Sua harmonia era complexa,
densa, mas correta. Não seria ele um pianista velocista, como eu busquei ser,
mas um harmonizador poderoso. Ele mesmo não se dizia um pianista, mas formado em Orquestração e Regência, era o cara. Contou a meu pai que certa vez em Volta Redonda,
onde eles moravam quando jovens, um senhor veio a ele pedindo que ele ensinasse
piano à sua filha, uma criança, chamada Tânia Maria. Ele ouviu a moça e fez pouco caso. Muitos anos
depois ligou a TV, e viu a já grande pianista de jazz apresentando-se,
totalmente famosa, na França. Disse que chorou de emoção.
Montamos os
instrumentos no palco e cada passo meu e plug que ligava, pensava em como o
professor estaria me olhando e medindo, fiscalizando, ele tinha o direito,
afinal era o trabalho musical que ele me preparara. Fizemos a apresentação, sob
olhos atentos musicais de meu pai, olhar este que eu me acostumei por toda
minha vida. Mas também de um Claudio, que finalmente me dava o
“direito de defesa”: mostrar a ele que o pupilo houvera aprendido alguma coisa.
A formação do show era bateria, baixo, guitarra, cantora e eu de piano
elétrico, instrumento que peguei emprestado com o querido amigo e grande Anselmo
Mazzoni. O trabalho rolou redondo, e, com ajuda de uísque, deu prazer a todos.
Os músicos que tive a sorte de tocar ali eram realmente muito bons. Tudo deu
certo. Dayse está no meu Facebox, acho que ela deve se recordar de quanto
aquele dia foi importante para mim.
Saí do palco como um
garoto que faz sua primeira apresentação para um pai austero e fiscal, querendo
ouvir alguma coisa daquele Claudio ali caladão e atencioso. Fui indisfarçavelmente
direto na direção dele e, claro, disparei: –
e aí, errei muito? E nesse momento ouvi uma das coisas que talvez mais
tenham marcado a minha vida. Com a mesma franqueza e objetividade de sempre, Claudio
disparou meio concordante: “é, o vagabundo aprendeu a tocar”. Aquilo para mim
foi um ato de amor, mas também uma avaliação espetacular. Não seria do seu
perfil falar se não fosse verdade. Meu pai deu um riso de vitória e gozo. Eu
devo ter concordado com aquele professor a quem ja houvera feito uma música com
letra para ele. Estávamos aí no final de dezembro de 2000, acho que dia 29 ou
30. E essas foram as últimas palavras que eu ouvi daquele “professor do coração”,
título da minha música. Quatro meses depois ele morreu. E ficou um buraco surdo
na minha vida.
Claudio nessa época já
estava casado com uma moça bem mais nova que ele. Claudio casou “tarde”, e teve 3
filhas. Meu pai dizia que a esposa devia ser uma santa
para aguentar aquele rabugento, como se meu pai não fosse um. Mas o amor é assim, as santas e os rabugentos. Nos muitos anos de
separação, acabei não fazendo contato com a família de Claudio, só meu pai fazia. Por
fim, perdi totalmente a direção da esposa e filhas que nunca cheguei a conhecer.
Adoraria dizer àquelas meninas o quanto aquele cara foi maravilhoso e importante
para mim, um homem que me ensinou a ver as coisas sérias e difíceis ligadas à
música e ao piano. Este foi o meu querido professor que homenageio. Talvez ele
mesmo não tenha sabido dessa importância, um dos defeitos da vida, um dos meus muitos defeitos. Gostaria que
meu pai também tivesse lido esse texto, mas no mês passado ele resolveu se ir.
Agora eles estão juntos. Um beijo para ambos. Jean Menezes de Aguiar.
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