A flor, a herança cultural mais poderosa, o amor.
Artigo publicado no Jornal O DIA SP em 30.2.12, http://www.jornalodiasp.com.br/site/index.php?option=com_content&view=article&id=52&Itemid=2
Gente inteligente deixa herança sem briga. A outra gente deixa com briga. É claro que essa divisão é grosseira, mas o princípio talvez não esteja errado: advogados vivem isso por profissão. Grandes fortunas são divididas sem qualquer mal estar, em famílias que previnem problemas. Antecipam acordos e deixam o maior tesouro de todos: laços sólidos e ternos. Pessoas inteligentes sabem que herdeiros podem se desentender, mesmo, e tratam de deixar tudo claro, definido, costurado e sem dúvidas. Quem vai discutir a vontade do pai ou da mãe?
Herança sempre foi, historicamente, uma causa potencial de discordâncias. Mesmo até entre parentes harmoniosos. Muitas vezes, com o crescimento da família e do patrimônio, filhos, noras, cunhados, genros e companheiros não conseguem manter a harmonia de sempre e aparecem “interesses”. O jurista Narciso Amoros já ensinava: “Onde há homens há interesses; onde há interesses há conflitos; onde há conflitos surge a necessidade de compô-los.” O ideal é que o conflito não chegue a surgir, mas para isso medidas preventivas efetivas precisam ser tomadas. Se houver litígios uma coisa é certa: quem ganha são os advogados.
Para muitos, o momento da herança é a única vez na vida à qual terão acesso a um patrimônio. O efeito psicológico disso no padrão ético de alguns, como mostra a experiência, é surpreendente; e devastador. Pessoas que sempre se mantiveram honestas, às vezes aparecem do nada com ideias auto-favorecedoras, para espanto de muitos.
Com a crise ética na sociedade e a inauguração do consumismo, padrões de honestidade, brio, caráter e gentileza foram para o ralo. Muitos fingem uma compostura, mas quando chega na hora agá, a máscara cai.
A experiência advocatícia já mostrou mãe ou pai querendo ludibriar filhos. Irmãos, tios e todo tipo de parentes e afins também já quiseram levar vantagem. Basta entrar dinheiro. As famílias, historicamente, mudaram muito. Antigamente, por exemplo, um tio possuía poder sobre o sobrinho para repreendê-lo. Essa relação de boa autoridade entre tio e sobrinho era típica de uma superconfiança amorosa familiar. A família era coesa. Atualmente, se uma tia brigar com o sobrinho, a cunhada é capaz de romper relações e se mostrar ofendidíssima. Afinal, como alguém na Terra pode corrigir o bambi da mamãe? Essa crise no parentesco colateral é bem pós-moderna.
A cultura da família coesa embalou a geração do Pós-Guerra pela necessidade de laços fraternos e juntivos à barbaria. Eram “obrigatórios” e deliciosos os almoços de domingo. Mas isso hoje parece não descer nem aos irmãos, quanto mais sobrinhos e netos. A pílula (maior revolução social do mundo), a união estável, o homossexualismo e os direitos iguais revolucionaram o conceito de família, esgarçando-o. No Brasil, o machismo legal só acabou em 1988 com a Constituição. A chamada família pós-moderna – mesmo seus núcleos – está quebradiça, autoritária, formalista, mas sobretudo emocionalmente fraturada.
Esta família pós-moderna quando num inventário judicial tem muito mais propensão a criar fervuras no relacionamento. Consultores jurídicos seniores são cada vez mais necessários para orientação inteligente e preventiva da herança, do testamento e do inventário, sem o emocional envolvido e com o conhecimento preciso e correto. O direito é sábio e os séculos já mostraram como e porque as famílias se desentendem. Também, o direito prevê tudo, além de não ser preconceituoso. Quem é preconceituoso é o homem. A lei e o direito dão apetrechos prévios para que uma família não tenha desentendimentos num inventário. Outra coisa será as pessoas quererem usar estes mecanismos inteligentes.
Mas por que pessoas “evitam” o tema de herança? Não é porque achem que nunca vão morrer. Há diversas causas. 1) não se gostar de discutir morte; pessoas supersticiosas evitam o tema. 2) não querer abrir o assunto por parecer que herdeiros em expectativa estão de olho na futura herança. 3) já há alguma fonte de problema, ainda que disfarçada, e o responsável quer deixar que aquilo exploda quando ele não estiver mais vivo. São inúmeros os motivos.
O fato é que não cuidar preventivamente da herança, pode permitir brigas que nenhum pai, mãe, avô, avó, tio ou tia desejaria. Como o conceito de “justiça” é maleável, cada herdeiro poderá inventar – o termo é esse mesmo – uma interpretação que lhe satisfaça para proteger um interesse próprio. Não se teoriza aqui um “final dos tempos” da família, em que todos sejam desonestos. Nada disso. Mas cada vez mais desavenças pontuais vêm surpreendendo clãs inteiros. A família pode ser comparada ao trânsito das cidades. Ele está agressivo? Pois é, mas ele é composto de pessoas, e pessoas compõem as famílias.
No menu da “lógica” de cada pessoa, há infinitas “interpretações”. Alguém vai dizer que é de justiça ficar com um imóvel porque “afinal de contas” já reside nele; ou porque “afinal de contas” benfeitorias foram feitas nele; ou porque “afinal de contas” é o parente mais pobre; ou porque “afinal de contas” é o parente que melhor tem condições de cuidar daquele imóvel; ou porque “afinal de contas” as crianças já se acostumaram ali e seria um “pecado” desalojá-las de lá; ou porque “afinal de contas” era o que “no fundo” o papai ou a mamãe queria, e por aí vão infinitamente os cínicos “afinal de contas”.
Ainda bem que dinheiro admite divisão em centavos, e a lei já conhece todos os disfarces. Por isso existe o instituto da “colação” que já foi objeto de um artigo aqui, há tempos: o filho que recebeu dos pais um bem ou valor adiantado deve, no inventário, computar o valor atual para gerar equilíbrio com o outro filho. Deve “colacionar” o bem, trazê-lo ao inventário, para que o irmão não fique no prejuízo. É o óbvio. Além de ser uma obrigação legal. Mas às vezes irmãos são passados para trás. O valor da colação de um herdeiro discretamente malandro não é corretamente corrigido ou é computado como valor histórico etc.
O pior cego é o que não quer ver, diz o ditado popular. Ou no caso prever. Acreditar que herança não tenha como dar problema numa família é inocência. É claro que muitas famílias mantêm-se com elevado e belíssimo padrão de honestidade e ética. Mas até para estas, o que custa “prevenir”? A prevenção “ofende”? Se alguém resiste ao “preto no branco”, ao transparente, ao ético, é porque pode ter interesse no escuso e no desonesto. Folha de papel aceita tudo, até grandiosos e belíssimos acordos.
A prática advocatícia em consultoria de heranças e testamentos consegue ótimos e inteligentes resultados. Inclusive sem utilizar inventário, mas outra figura que o substitui, chamada “arrolamento”, uma forma judicial muito mais simples e barata cabível em muitos casos. O Código Civil de 2002 contém todos os instrumentos para que pessoas organizem com segurança e equilíbrio o futuro do patrimônio e a harmonia da família, impedindo desavenças. Essas são as pessoas inteligentes que deixarão inventários inteligentes, calmaria na gestão da herança e harmonia entre os herdeiros. O amor eterno na família precisa de um bom gestor, inteligente e inesquecível. Jean Menezes de Aguiar.
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