O martelo da justiça
No episódio do julgamento de Lindemberg Alves, que matou a ex-namorada Eloá, ficaram expostas, de novo, algumas “fraturas” sociais. Imprensa sensacionalista e sociedade ávida são duas pontas que se atraem muito bem, e produzem um grosso caldo cultural. A TV pegou o jeito de faturar alto com processos judiciais, ainda que transformados em escândalos. Agora, é só repetir a fórmula: sempre que tiver um julgamento tormentoso dará à sociedade muita notícia e fofoca. Tudo em imitação ao modelo americano, e viva o consumismo.
Por outro lado, como sobra vaidade entre profissionais do direito – praticamente todos somos picados por essa mosca –, há um festival de frases de efeito garantindo o sucesso de audiência. Nesse ritmo, as aflições e agonias transmitidas pela TV precisam começar a chegar às famílias já às 7 da manhã em telejornais nervosos. O estresse da audiência começa cedo. Na sociedade da tragédia a pressa é o combustível mais valioso.
O que puder propiciar escândalo, sê-lo-á, afinal ele é garantia de ricos anunciantes e felizes lucros. Mas esse ritmo também garante sensações sociais extremadas. Com grande parte da sociedade podendo ser considerada “povo marcado povo feliz” (Zé Ramalho), assistindo Faustão, Gugu, Datena e Bbb-edição-154, manobrá-la não é nada difícil para um intelectual da mídia treinado em efeitos e resultados.
No direito, meandros difíceis como procedimentos penais, contraditório, ampla defesa, persecução penal, sentença de mérito, soberania dos vereditos, agravantes, qualificadoras, atenuantes, provas, indícios, presunção, certeza, materialidade, autoria, laudo técnico, sentença, sistema recursal, imunidades de advogado, juiz e promotor, direitos humanos, sistema prisional, tudo vira “óbvio” e “simples”. Mas para quem? Para o imbecil sempre há respostas “absolutas”, “simples” e “fáceis”.
No show do julgamento pela TV o que menos importará é o réu, que já vai para o Júri sob berros quase que histéricos de “justiça”, mas querendo dizer-se linchamento, justiçamento. É o disfarce da nova barbaria social. Algumas dessas relações precisavam ser analisadas com cuidado, ainda que uma sociedade sedenta de vingança não vai querer saber de análises cuidadosas.
Uma primeira análise é que o berro social por vingança não é de todo ilegítimo. O crime é sempre despudorado e socialmente ofensivo. A sociedade tem o direito de desejar vingança, só que sob a forma de uma sentença condenatória correta. O problema é se pensar se no sistema penal essa sentença judicial não será absurda, não violará o próprio sistema que foi criado pela mesma sociedade.
Depois, algumas relações são exploradas com sensacionalismo. No julgamento desse sujeito aí a imprensa criou o “desrespeito” sobre a fala da advogada que mandou a juíza estudar. Como se o advogado não tivesse imunidades legais (muitos na sociedade não gostam disso). Como se a frase em si compusesse uma infâmia, e como se juízes, advogados e promotores que eventualmente erram, não precisassem estudar mais. Isso é o que dá “comentários internos”, técnicos, de alguma área de conhecimento, jurídico, médico etc., chegarem ao público por meio de “interpretações” de apresentadores de TV. O desastre é garantido.
Em toda história de julgamento por júris, famosos ou não, profissionais do direito sabem que há farpas, vaidades, frases de efeito, jogos de convencimento, empatias fabricadas, antipatias inoculadas e todo um teatro jurídico que não “magoa” quem está ali. Nem juízes, nem advogados nem promotores. Muitos não sabem que a Lei 8.906, no art. 6º, é cabal: “Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos”. Basta ler quantas vezes quiser.
A ausência de hierarquia ou subordinação citada na lei não entra na cabeça de muita gente, de uma sociedade “respeitosa” e educada sob mando e poder do pai, do patrão ou da autoridade. Dizem, alguns, que “no fundo” essa não é bem assim. Só rindo. Como se não bastasse, na mesma lei, art. 31, § 2º ainda há: “Nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão.” As palavras dizem tudo. Basta ler.
Por fim, o Código Penal, art. 142, contém: “Não constituem injúria ou difamação punível: I - a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador.” Mesmo que a frase da procuradora fosse “ofensiva” – como quis a imprensa –, estando conexionada com um julgamento, só um juiz imaturo se “sentiria” ofendido por uma bobagem dessas. A maturidade profissional exigida a advogados, juízes e promotores “aguenta” essas farpas e cutucões, quando não os responde exemplar e deliciosamente. A juíza, por seu turno, mostrou serenidade em não dar bola. Já a promotora, mera autora da ação penal – parte! –, quis tomar dores.
É uma pena tudo isso periférico desvirtuar a atenção e ganhar importância num julgamento, levando para o réu uma antipatia “criada” para o advogado. A imprensa que já não morre de amores por advogados, patrulha os pedantes, também como se ninguém tivesse “direito” de ser pedante. E aí a própria imprensa, quando patrulha, perde sua isenção e se arvora em dona da verdade.
O direito não é “simples”, nem é para leigos. Isso não é “reserva de mercado”, mas dificuldades naturais de um conhecimento técnico, seja ele qual for, direito, medicina, química, biologia etc. Um dos “problemas” do direito é que ele se “populariza” por meio de apresentadores de TV e outras figuras, dando a impressão de que o pensamento jurídico é fácil. No livro Introdução ao pensamento jurídico, do alemão Karl Engisch vê-se que não é. Reclamações sobre o “juridiquês” são infantis. Todas as áreas científicas possuem suas linguagens.
A sociedade ávida precisa aprender a separar joios de trigos. Existe o conhecimento, a informação, a notícia e a fofoca, 4 níveis distintos. A sociedade faz sua escolha, mas aguenta as críticas.
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