Jean Menezes de Aguiar
Como “ler” o povo? Esta equação nunca teve resposta
exata na ciência, até porque as ciências da área não são exatas. Observadores
qualificados vêm tateando interpretações plausíveis. Buscam respostas para os
protestos no país. O protesto está mais que vivo, parecendo se replicar. O assunto
não é mais o aumento de preço dos ônibus. Reacionários, conservadores e
autoritários de plantão dirão, em sanha “ordeira” que o movimento é baderna. Não
é. O fato é que o povo parece ter acordado. Se não o povo, grande parte dele. A
ponto de mobilizar a imprensa nacional e mundial.
O protesto
não foi um momento; está sendo um processo. Coisas bem diferentes. É como se a
sociedade descobrisse que é mais forte que a polícia, aí o primeiro degrau. A
coisa do “povo unido” foi testada. Não pela primeira vez, pouco importa, mas o
sabor da vitória está crescendo. De novo, há o ingrediente da internet que
torna fácil reunir a “galera”. Se os manifestantes “descobrirem” que são também
mais forte que o Estado, podem querer “tomá-lo”. O nome disso? Um velho nome em
desuso: “revolução”. Claro que nada é tão simples assim. Mas o país está
sacudido e governantes perderam o sono. Muito bom isso.
O filósofo com a cabeça na guilhotina, na França,
dispara: “Ó carrasco, de onde vem o seu poder sobre mim, se todo poder emana do
povo?” O caso é que no Brasil, os governos e suas “autoridades”, há décadas,
são carrascos do povo. Vitalícios ou perpétuos. Remunerados como reis num país historicamente
humilde. Com evolução patrimonial pessoal jamais fiscalizada. Frequentadores de
coquetéis nababescos em “palácios”. Com meses, no plural, de férias legais (e
imorais) por ano. Com poder de aumentar os próprios salários. E muita, muita
impunidade. São também filhos e netos beneficiados, herdando e sucedendo cargos
e postos. Ou pelo voto ou por concursos arranjados.
Roberto Romano, professor de ética da Unicamp, ensina
que o Brasil vive uma “autocracia”, um modelo imposto pelo Estado e seus
agentes à sociedade. Mas a falência do modelo mostra os caninos, com cáries. A
questão passa exatamente por isso: de um lado “autoridades” inatingíveis e
chafurdando na corrupção, do outro o “mero cidadão”. Não houve diálogo na imposição
desse desenho autocrático.
Se
a sociedade “perceber” o custo social desse Estado desonesto, somado ao custo
social das “escolhas” que ele faz, por exemplo com o gasto de bilhões de reais
na Copa, tudo comparado à míngua em atendimento público, pode, sim, haver
rompimentos sistêmicos graves.
Talvez os protestos tenham uma resposta paradoxalmente
complexa e simples. A náusea social. O não aguentar mais do povo brasileiro
para com o modelo institucionalmente corrupto do Estado. Fica clara a erupção
de uma revolta do povo sofrido há décadas que percebe que poderia ter condições
sociais infinitamente melhores. Saúde, transporte, educação, segurança e
felicidade social poderiam pertencer ordinariamente aos lares brasileiros. Não
há isso por um problema única e exclusivamente de gestão. Ou melhor, má gestão,
aliada à endêmica e antropológica corrupção oficial. A desculpa da falta de
dinheiro não convence mais ninguém.
Com a internet o mundo ficou menor. Sabe-se aqui que
na Noruega há bicicletas para todo mundo. Sabe-se aqui que na França os pontos
de ônibus têm hora e minuto de chegada do coletivo, e ele chega. Sabe-se aqui
que deputados em diversos países têm um sala-e-dois-quartos para viver. Se não
quiser, dane-se. Ou chore. Se as comparações não servem como um modelo para “imitação”,
servem como inspiração. Se não são esses modelos precisamente, há inúmeros
outros.
Quanto à atuação da polícia nos protestos, é um caso
à parte. A autonomia da polícia, percebeu-se, é zero. Ou ela atende a uma ordem
direta de um secretário de segurança autoritário de baixar o sarrafo, como
cumpre cegamente e baixou; ou atende a uma ordem de um governador também
autoritário que percebeu a besteira na gestão e determina, então, uma leniência
promíscua, e ela também cumpre. Vira a polícia chuchu, insossa e omissa, além
de errada. Mais uma vez a polícia foi usada, em SP na primeira manifestação,
como o ex-delegado carioca Hélio Luz se referiu no maravilhoso documentário Notícias de uma guerra particular: um
mero e típico instrumento de repressão a favor das elites.
O fato de não haver uma direção nem uma pauta
definida nos protestos foi percebida por não poucos observadores como uma
deficiência. Mas exatamente isso pode ser o que de mais legítimo há.
Considere-se a frustração que foi o último grande sonho nacional, a
Constituição de 1988, em termos de efetivar o tal “país do futuro” como país do
presente. Some-se isso à corrupção e à impunidade. O resultado pode ter
começado com estes protestos. Nas ruas. Esta semana.
Poderá ser fogo de palha? Poderá. Já se cantou que
bastava um jogo de domingo no Maracanã para que o povo esquecesse a ditadura e
as dificuldades. Mas o certo é que muita coisa mudou. Aí está a esperança.
Pelo lado do Estado, viram-se “autoridades” visivelmente
contrariadas, porque em xeque com sua gestão desmoralizada, experimentando um
cinismo prêt-à-porter. Tentando demonstrar
“gostar” das manifestações. Dilma, num segundo momento orientada por Lula, ensaiou
capitalizar sobre a situação. O Psdb profetizou que quem fizer isso sofrerá um
sinistro “preço de retorno”. Todos quiseram tirar casquinha. O fato é que
políticos não sabem viver sem pensar nos próprios umbigos e currais eleitorais.
Não fazem pelo país e pela sociedade. A reeleição é um crack eleitoral. Até
Feliciano aproveitou e aprovou sua “cura gay” na comissão de direitos humanos.
Pelo lado dos manifestantes, pacíficos e poderosos, a
nota é 9,9. Parece não haver outra. Vem sendo tudo espetacular. Pelo menos no
plano numérico. Se vinte imbecis, vagabundos, ou criminosos, em uma passeata de
200 mil manifestantes têm força física para incendiar automóveis e quebrar
portões, atraindo uma imprensa que, percebe-se, adora um fogaréu na noite, é
parcela ínfima. Isso borra o movimento e exporta essas imagens para o mundo. Mas
o saldo no país é inegavelmente positivo. Nem apenas porque diversas
prefeituras e governos já começaram a baixar tarifas, de pressinha. Mas a
própria conscientização democrática de se manifestar.
Há um hiato abissal entre o legítimo anseio da
população, o desejo social, e a obrigação de atendimento público pelo Estado.
Vive-se um neocoronelismo urbano atualmente mais agudizado pelo recrudescimento
de um “estamento burocrático”, nas palavras de Raymundo Faoro. O Estado,
historicamente, só cuidou bem “dos seus”. Afora a raia miúda de funcionários
públicos, invariavelmente também explorada, os escalões de mando e gestão sempre
zombaram de quem lhes paga, o povo.
Praticamente
toda a sociedade parece ter desenvolvido uma ojeriza uniforme por políticos, e
não só estes. Nada que ver com anarquia. Os protestos podem mostrar que é o
povo que manda. Tomara que seja assim. Jean Menezes de Aguiar.
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