quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

2013 incendiado

Quando a dor tem imagem.
Artigo publicado nos jornais O DIA SP e O ANÁPOLIS, semana de 31.1.13
 
Se há, no Brasil, anestesia social pela rotina semanal de escândalos com corrupção e impunidade, não há com a tragédia. A tônica é a de que o incêndio que se abateu sobre o país traz forte carga de culpa do Poder Público. O Estado faz cara de honestidade infalível, impõe penas e multas, dívida ativa, privilégios de cobranças, execuções fiscais, varas judiciais ciumentas para seus créditos, tem procuradores, auditores, fiscais, vasculhadores e investigadores para todo tipo de coisa. Obriga à sociedade uma infinidade de autorizações, laudos, vistorias, pagamentos, recolhimentos, taxas, impostos, contribuições, guias etc. Parece que tudo isso é real e “adianta”, que previne algo. Aí, 235 pessoas morrem queimadas em Santa Maria.

De 3, 1. Ou tudo isso é um grande e milionário cartório somente para arrecadar dinheiro para o Estado e dane-se a sociedade, com baixíssima eficiência. Ou tudo isso é uma grande incompetência das “autoridades” que não têm inteligência para traçar um menu de exigências capazes de conter, efetivamente, um único incêndio em uma casa noturna, a ponto de 235 pessoas morrerem. Ou as exigências valeriam, eficientemente, mas os agentes do Estado são compráveis, alugáveis, corruptos e dão o papelzinho de autorização para quem pagar.

O “culpismo” aí é a sanha de se achar um culpado no primeiro momento. Percebe-se que essas boates são caixotes blindados com leões nas portas de saída proibindo quem tentar fugir sem pagar. Que há alguma culpa do empresário, ninguém discute. Mas a culpa do Estado também é nítida. Agora começa a ser discutida, seriamente, a culpa dos Bombeiros no resgate. Uma novidade e tanto, inclusive pedindo “ajuda” à população. Ajuda?

O governador no primeiro momento correu para a Tv, mostrou-se “preocupado”. Prometeu apuração de responsabilidades. Quem acredita nisso, a sério? Num país em que a sociedade põe o dedo na cara do poder público, não é o Brasil, talvez algum ministro já tivesse se suicidado; o governador se demitido. O Chefe dos Bombeiros já estivesse na rua. O nome disso é “exemplariedade”, mas este padrão ético o poder público brasileiro não conhece. O Corpo de Bombeiros, por exemplo, pertence ao governador. Quem “escolhe” seu chefe é o governador. Aí os formalistas berrarão: calma, há o devido, sagrado e constitucional processo legal. Alguém só pode ser considerado culpado após um processo. Ok.

 O prefeito (Município) diz que paga ao Corpo de Bombeiro (Estado) para fiscalizar. O que isto quer dizer? Com este pagamento não há mais responsabilidade da prefeitura? O Corpo de Bombeiro defende-se dizendo que não pode “fechar boate”. Então estamos combinados: ninguém tem culpa. Mandemos para cadeira elétrica moral o dono da boate e a vida continua.

Há uma assimetria nítida em três pontas aí, entre 1) a forte exigência do Estado na burocracia para a instalação de um estabelecimento, 2) a liberação efetiva do estabelecimento e 3) o risco de morte, no caso consumando óbitos. É exatamente com receitas fáticas assim que institutos jurídicos são revistos. Dizer-se, formalistamente, que a responsabilidade jurídica do Estado é somente mediata, num caso como este, é aceitar um padrão assimétrico. É dizer que todas as “necessidades” de vistorias oficiais – caríssimas – não servem para nada. Mesmo elas existinto, 235 pessoas podem morrer. Então elas servem para quê? Não é mais este faz de contas fiscalizatório que a sociedade quer.

Se o Estado “inventa” uma fiscalização e a impõe à sociedade, cobrando caro por ela, esta fiscalização tem a natureza jurídica de “absorver” um quantum de responsabilidade imediata, pelo menos num evento-catástrofe como o de Santa Maria. Não adianta um procurador estatal qualquer dizer: mas não foi o Estado que matou! Diante de 235 mortes esta alegação é lixo. Fica em xeque o porquê de exigências e fiscalizações se elas não adiantam nada. Em Santa Maria não adiantaram.

 Quem fiscaliza o fiscal? E o fiscal do fiscal? Essa regressão só não pode chegar na sociedade por um único fator: ela sustenta um Estado luxuoso e milionário. É claro que em última análise há uma culpa “nossa”, mas o Estado é ilegítimo para discuti-la. Somente nós, do lado de cá do balcão podemos fazê-lo. A divisão é “artificial”? Então porque somos “fiscalizados” e isso não adiantou nada em Santa Maria?

Mas a corda costuma arrebentar no lado mais fraco. Prendam o Severino! O vigia de boate que nasceu com 6 quilos, hoje tem 1,99m de altura, pesa atualmente 140 kilos, não completou o ensino fundamental e basta olhar para a figura: é o “segurança”. Prendam ele que, com sua cabeça e obediência de salário de segurança lutou para não deixar ninguém sair da boate pela porta de emergência. Prendam ele, que planejou matar 235 pessoas, só vai faltar isso. Prendam ele que “criou” a norma trabalhista  que descumprida dá justa causa, de: “por aqui não sai ninguém, entendeu Severino, nem a minha mãe!”.

                Já se soube que há 10 grandes boates em São Paulo sem alvará. Mas também, alvará é um papel. Será que faticamente, verdadeiramente, representa garantia de algo? A boate de Santa Maria tinha alvará, válido até poucos meses atrás. E daí? Após o desastre, o prefeito de SP prometeu que “conversará” com donos de boates. Sem comentários.

                Esta semana, donos responsáveis de boates deveriam estar revendo seriamente seus estabelecimentos. Frequentadores também devem rever sua vontade de “uhuuu”. Oficiais dos Bombeiros do país deveriam estar nas ruas espontaneamente vasculhando imóveis potencialmente perigosos como boates, estádios de futebol, circos, igrejas e tantos outros. Nenhum túnel da cidade de São Paulo tem extintor ou mangueira de incêndio. Você sabia? Parece que o Corpo de Bombeiros não sabe. Os buracos e instalações apropriados estão todos lá, vazios. São Paulo!

                O incêndio de Santa Maria sora impunidade e continuará sorando. A menos que um choque de ordem (de verdade) “houvesse”, nada será mudado. O legislativo já quer surfar: fazer novas leis.

Este artigo seria jurídico, tentando rediscutir a responsabilidade jurídica do Estado, o “responderão”, palavra da Constituição da República, art. 37, parágrafo 6º. Mas a revolta é grande, perde-se a mão. Quem sabe uma lei que dissesse que o governador, os secretários da área e todos os chefes de fiscalização, investigação, procuradoria ficariam automaticamente impedidos, sem salário, com qualquer desastre social com mais de 50 pessoas atingidas? Não me culpem por sonhar. É o que restou. Jean Menezes de Aguiar.

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