Até a justiça pediu um banquinho pra descansar
Sempre que temas muito sensíveis são postos a julgamento, como o caso da interrupção da gravidez envolvendo anencéfalos, alguns segmentos da sociedade se mostram totalmente comprometidos. Cada um desses segmentos avoca para si o direito de ser o dono da verdade e da totalidade do conhecimento envolvido. Basicamente aí, digladiam-se, de um lado, o direito e a ciência e do outro a religião.
Cezar Peluso, do Supremo, chegou a repetir a afirmação um tanto quanto pomposa de Celso de Mello de que “este foi o mais importante julgamento da história desta Corte, por que se buscou definir ao alcance constitucional do direito à vida”. O fato é que alguns questionamentos se tornam legítimos. 1) cabe ao direito definir o direito constitucional à vida? 2) são os juízes do Supremo os qualificados e confiáveis para fazer essa interpretação? 3) cabe ao Supremo resolver essa questão? 4) qual é, num Estado corretamente laico, a estrutura que deve “definir” a vida para esse fim: a ciência ou a religião?
A resposta à 1ª pergunta é um retumbante sim. Vários direitos e deveres são garantidos e impostos em razão do conceito de vida. O conceito jurídico de vida que já garante os direitos do nascituro e fixa o momento da morte pertence exclusivamente ao direito. Para esta empreitada conceitual se vale o direito da biologia e da medicina, obviamente, os ramos do conhecimento que se dedicam a estudar fisicamente a vida. Como este estudo da vida não é próprio do direito e ele não vai consultar “achólogos”, fundamentalistas religiosos e outros curiosos, recorre aos cientistas.
A 2ª questão admite também uma resposta positiva. Os juízes do Supremo, mesmo com acusações de politização de certas decisões, mostraram-se estudiosos e compenetrados na decisão. Os votos e análises foram profundos e cuidadosos, denotaram seriedade e cientificidade. Foram empregados os melhores e mais precisos conceitos biológicos sobre a vida. Não ficou no ar nenhuma suposição de decisão relapsa, superficial ou não fundamentada. Ainda, o escore de 8x2 mostrou um grau de certeza em esmagadora maioria que imprime correção à decisão.
Sobre a 3ª questão, a não ser o Supremo a instância legítima a decidir o tema, quem seria o legitimado? A Igreja? Um plebiscito? Uma democracia direta votada em praça pública? A Igreja exibe, desde a Roma antiga um bom nível de estudiosos, mas o Estado moderno é laico e as crenças já produziram equívocos grandiosos com base apenas em dogmas e credos. Ainda, o tema é totalmente complexo e científico para ser submetido a uma carnificina social de votação popular e selvagem do tipo “contra” ou “a favor”. Esse maniqueísmo do certo/errado é totalmente primário.
A 4ª questão opõe ciência e religião. Países como o Brasil talvez comecem a apresentar preocupantes currais de fundamentalismo religioso, o que é a contramão da modernidade. Famílias, por exemplo, têm vivido guerras internas pelo radicalismo de estigmatizar parentes que não sejam da mesma religião. O Ocidente avançado mostra uma direção na libertação de mitos, crendices, magias e duendes, ao mesmo tempo que se estabiliza em democracias plurais, com multiculturalismo e humanismo. Todo fundamentalismo, desde Hitler, prega células e sistemas fechados e agressivos como se dá, ainda atualmente, com os países com religião oficial. Nesse radicalismo o que não se produz é conhecimento, apenas de dogmas.
No avesso disso está a ciência que admite publicamente seus erros e verdadeiramente os endeusa, afinal cada erro representa avanço e progresso. A anencefalia, como profundamente estudada e conhecida tanto pela biologia quanto pela medicina, e utilizada pelo Supremo, é uma tragédia familiar dolorosa, ninguém duvida. Mas o que resolve não são “esperanças” ou mitos. Aliás, o verbo “resolver” talvez seja errado aí. O que se pode buscar numa situação dessas são formas menos dolorosas, menos traumáticas para a família.
A liberdade talvez tenha sido o melhor que o Supremo concluiu, no caso da anencefalia. Essa é a grande verdade, uma liberdade multicultural, democrática e aberta. A mãe que quiser enfrentar a gravidez por convicções suas, poderá fazê-lo e ter o filho como lhe aprouver. E a mãe que não quiser enfrentar essa situação dolorosíssima, não estará cometendo um crime. Por que se punir a liberdade das mães em casos tão graves? Por que se dar um tratamento maniqueísta de “a favor” ou “contra”? A dor bate em cada pessoa de forma diversa. O Supremo não obrigou a interrupção da gravidez, nem poderia fazê-lo. Abriu caminho à liberdade de mães dilaceradas.
Por outro lado, espertalhões religiosos de plantão, esses com baixo nível de estudo em tudo que não seja “dogmas”, aproveitaram para colocar, desonestamente, palavras nas bocas dos juízes do Supremo. Como se eles fossem imbecis ou radicais. Não são. Julgaram com seriedade, discutiram em alto nível a questão, consultaram as melhores fontes científicas e honraram o Brasil com uma decisão muito difícil, democraticamente discutida, transparente, conteste com o primeiro mundo e juridicamente correta.
O Supremo julgou em 8x2 pela liberdade! Isso sim. E há que se estranhar quem seja contra a liberdade. Seriam suspeitos, se não fossem apenas imbecis, os que se mostram contra a liberdade, em pleno século 21. Mostra-se autoritário quem acha que pode saber da dor de uma mãe nessa situação, a ponto de querer lhe impor uma única conduta que “acha” ser a certa e que possa ser contra a inteligência, o coração e a vontade de ser mãe dessa mesma mãe. O Supremo fez conter o radicalismo e mostrou ao país que há vida inteligente aqui. A liberdade venceu, ainda que entristecida pelo tema. Jean Menezes de Aguiar.
temo apenas por recrudescimento da questão em debates ainda não findos em becos, vielas e igrejas.
ResponderExcluirda mesma forma como senhoras histéricas lotaram o Congresso para que não passasse a Lei do Divórcio, temo que o mesmo aconteça em salas-de-estar das famílias brasileiras.
o tema é sensível? sim! esgotou-se com o julgamento do Supremo? talvez...
a ciência aponta a certeza dolorosa do fim da vida após o parto. a questão é a contraposição (e até rfutação) de comprovações científicas por religiões (todas sem exceção).
excelente texto, professor!