quarta-feira, 7 de março de 2012

Vaidade oficial

Artigo publicado no  Jornal O DIA SP em 8.3.2012

                Século 21, ano de 2012, o Brasil já não é mais o país do futuro em muita coisa, mas a vaidade oficial não para, em todas as instâncias. Daquelas que não basta ter um coquetel por semana para ir. Ou poder fazer o regime de trabalho conhecido por TQQ – terça, quarta e quinta, sem se falar nos salários que, em termos brazuca, nunca foram “miseráveis”. Mas isso é pouco. O poder tem suas jactâncias, suas babas e roupas engomadas como a de um príncipe dândi, conceituado por ninguém menos que Baudelaire, e citado em Habermas, O discurso filosófico da modernidade. A leitura é um gozo.

                À vaidade se mistura o “orgulho”, este furúnculo mental lancetado por Voltaire que ensinava que o sentimento seria perdoável a um Cícero, a um César ou a um Cipião. Não “em tão mesquinho animal como o homem”; desses que compra um cargo público ou imprime versos medíocres, “eis o que dá matéria para nos rirmos longamente” (Dicionário filosófico). A reação das “autoridades” ao gênio sempre foi com prisões enérgicas. A história é prenhe dessas magnificências, excelências e autoridades; claro que também roubalheiras e prostíbulos.

                O jornal A tribuna do advogado, da OAB carioca, traz uma longa entrevista com o lúcido juiz Rubens Casara, da 43ª Vara Criminal do Rio, com o título “Posição de destaque do MP nas salas de audiências viola o princípio da isonomia.” Parece piada, mas não é. O MP continua sua estranha luta para se sentar na mesma altura dos juízes nos seus palcos, tablados, degraus, ”altinhos”, construções de madeira para se ficar mais alto, sabe-se lá que nome técnico ou jurídico terá aquilo.

                Essas “vontades” são conhecidas dos estudiosos. Gerhard Heberer, Gottfried Kurth e Ilse Schwidetzky-Roesing, na obra Antropologia, 1967, p. 37, desnudam: “As vênias e as mesuras, o tirar o chapéu, o ajoelhar-se rebaixam os de extirpe inferior; a atitude dos indivíduos que ocupam as escalas superiores das hierarquias são exaltadas e aumentadas por meio de artifícios técnicos. Máscaras, adornos da cabeça (tais como coroas e diademas), coturnos, assentos altos, vestuário vistoso, tudo isto serve para engrandecer a imponência do aspecto.” Estranha sanha essa do “rebaixamento” do povo.

                O Conselho Federal da OAB, por seu Pleno, ingressou, corretamente, com ação no Supremo Tribunal Federal pedindo a declaração da inconstitucionalidade da lei complementar 75/93, que garante aos promotores “sentarem-se no mesmo plano e imediatamente à direita dos juízes singulares ou presidentes de órgãos judiciários perante os quais oficiem.”

                O MP, inegavelmente a instituição que mais cresceu com a Constituição da República, deveria se envergonhar desse artigo de lei. Deveria optar pelo povo, sentar-se na mesma altura que o povo. Mas esse altruísmo (que palavrão filosófico) parece não se coadunar com “razões” elevadíssimas, respeitosíssimas para uma igualdade cartersiana e centimetralmente perfeitíssima entre a altura da cadeira do juiz e a do promotor. Que ofensa, gritarão alguns. Que ridículo, rirá a sociedade lúcida.

                Ficar o promotor 10 ou 20 centímetros em nível abaixo da altura da cadeira do juiz será, certamente um desrespeito, dirão os legalistas plantão. É por isso que esse sentimento do “desrespeito” é um atalho ou porta dos fundos da retórica para a falta de argumento num debate. O filósofo Lou Marinoff, na obra Mais Platão menos prosac, ensina: “As pessoas que procuram se ofender sempre encontram motivo para isso; consequentemente, são elas que têm um problema”. Perfeito.

                As “más” línguas populares diriam no caso: – Por que então fez concurso “só” para promotor e não fez “logo” para juiz? O MP utiliza as instalações “do Poder Judiciário” num julgamento. O MP tem prédios próprios, como o Judiciário tem. É natural que certos detalhes privilegiem o dono da casa. Que “infâmia” há em 20 centímetros a mais de altura numa cadeira?

                Certos enfeites, rapapés e alegorias vão se sustentar até quando? Mais 50 anos? Mais 20? As perucas brancas ridículas com cachinhos que os ingleses ridículos usavam de forma ridícula foram aposentadas. Por muito tempo eles a “defenderam” dizendo que era “tradição”. De novo, o ano de 2012. “Tradição”? Que argumento mais oco. Galileu em 1615 já disparava: “A razão desliga-se de toda a autoridade, tanto da tradição como dos sentidos.” Qual é a “razão” para certas coisas fundamentalistas ou ultra-formais desse universo jurídico? Não há razão outra senão a tradição.

                O bafafá da altura da cadeira do promotor x cadeira do juiz é uma dessas questões que parece não ter razão “razoável”, e ocupará o Supremo Tribunal Federal. Ridículo. Alegar que deve ser assim porque está previsto em “lei”, é de um positivismo roxo doentio. Alegar que foi uma “conquista”, é andar na contramão da história num momento que o “próprio” Judiciário mais se preocupa, corretamente em se popularizar (e o MP, quando começará?).

                Com a Constituição Cidadã de 1988, as entidades, órgãos, Poderes devem se reinventar no sentido de atendimento e acesso à população, uma palavra: transparência. Que não é favor. Todos os movimentos na direção de um sentido autoritário, conservador, hermetizante, devem ser rechaçados por cabeças lúcidas, arejadas, modernas.

                No processo penal o promotor é o autor da ação, nada mais que isso, ao lado do réu. O citado juiz Rubens Casara relata um caso em que foi alvo de uma esdrúxula “nota de repúdio” do MP por ter indeferido um pedido de prorrogação das prisões temporárias num caso do Detran RJ. Quanto autoritarismo. Quer dizer que o juiz “tem” que atender aos “pedidos” do MP? É óbvio que não. Esse asco de alguns promotores por advogados, no sentido de que têm ficar 10 centímetros mais altos, precisa ser psicanaliticamente trabalhado. Filosofia clínica certamente ajuda.

                Quem milita no dia a dia forense sabe que essas situações são corriqueiras e mundanas, até tolas. O fato é que num julgamento criminal, há uma questão essencialmente ética envolvida: o promotor não deveria ficar de tititi com o juiz, tentando passar a imagem de amiguinho “da justiça”. Na cabeça do leigo, os jurados, no Júri, essa amizadezinha cênica perpassa a ideia de que a justiça está do lado da acusação. Isto é lamentável e totalmente errado. Bons promotores repudiam esse péssimo comportamento e dizem que não precisam dele para sua atuação profissional. A ação da OAB no Supremo, pela altura do tablado da cadeira ainda vai dar pano para manga. Mas cá entre nós, Supremo precisar discutir altura de tablado para promotor é o fim. Jean Menezes de Aguiar

Nenhum comentário:

Postar um comentário