Eu e o homem da minha vida, década de 1970
Artigo publicado nos jornais O DIA SP e O ANÁPOLIS
Semana passada cogitei com uma das
minhas filhas de escrever uma matéria aqui sobre o meu pai. Seria algo parcial,
puxar a sardinha para minha brasa, difícil, reconheço. A filha achou a ideia ótima,
claro. Mas não deu tempo de ele ler a matéria, ele lia todas e vibrava, mas esta
não deu. Ele resolveu surpreender. O jeito é tirar algumas lições da situação,
aproveitando, claro, para encher a sua bola e que sirva um pouquinho para outros
pais.
Lições de vida são como um
investimento, para sempre. Quando achamos que não será preciso, elas próprias
se fazem presentes, delicadamente, cuidando de quem as coleciona e as trata
bem. Grande parte dessas lições se aprende com uma educação familiar poderosa e
ética; qualificada e com autoridade; recheada de valores saudáveis e amorosos.
Confesso que esse grande prêmio da vida, para mim o maior de todos, meu pai
deixou, sem qualquer dúvida. Sem exagerar um milímetro sobre suas qualidades
ligadas à inteligência e à educação, ele seria um ótimo modelo para tantos pais
perdidos dessa atualidade vocacionada para a futilidade.
Uma primeira lição que ele
deixou foi a da previdência, a previsão das coisas, calcular o futuro. Essa
lição me ajudou por toda a vida, inclusive quando meu telefone tocou em São
Paulo e minha irmã me deu a notícia. Se é que é possível, eu estava “preparado”,
e mais: como ele queria. Experimentar essa lição dele, para ele com sua própria
morte foi uma prova de fogo que, parece, funcionou como um relógio no meu
emocional. Os momentos difíceis vieram-me com total equilíbrio, lucidez e paz.
Pessoas tolas diriam que é frieza. Meu pai era um misto raro de lógica calculada
e emoção ardente. Talvez por isso esse meio ateu, aposentado do Banco do Brasil
e gaitista inveterado que tocou até a véspera de sua morte, conduzindo seu
próprio automóvel aos 83, não tenha causado em mim um estrago emocional que ele
próprio não gostaria de causar. Até isso devo a ele.
Outra lição foi a autoridade,
como pessoa e na educação, que jamais pode ser confundida com autoritarismo ou violência.
Ao mesmo tempo que amoroso, totalmente
informal, brincalhão, presente e meloso com os filhos, meu pai soube ser austero
quando tinha que ser. Os filhos, tínhamos orgulho de “congelar” com apenas um
olhar dele. “Limite”, palavra da moda, para ele não era ter que falar 2 vezes
com o filho. Muito menos 17 como é hoje. Digo que foram erradas as palmadas
sérias que não pegaram em mim. Querer que quem mais ama não possa dar palmadas
para educar é “coisa de fraco”, como dizia esse pai. O maravilhoso ator Clint
Eastwood, quem ele gostava, já disparou que no seu tempo “dava um soco na barriga
do cara e tudo se resolvia, hoje em dia querem perguntar como se lidar
psicologicamente com a coisa, daí uma geração de maricas”. Aí a fôrma do meu
pai.
Uma terceira lição foi a
densidade, a intensidade na forma de viver. Meu pai não poupou vida. Viveu bem até
sua última noitada. Na última década, passou por alguns AVCs e cirurgias e
nunca se abateu. Trocou de carro aos 80 anos e quinzenalmente dirigia até
Arraial do Cabo. Ele inventava energia. Na véspera de sua morte, último domingo,
foi tocar no Panorama Piano Bar, no Hotel Mercure, Rua João Lira, Leblon, no
Rio, onde sempre ia dar canjas com Antenor Luz, grande violonista, e um grupo
de cantoras lindas & maravilhosas, e cantores os melhores do mundo. Assim
são esses espaços culturais maravilhosos, infelizmente raros atualmente.
Espaços para felicidade musical da alma.
Nunca fui ao Panorama com meu
pai, recusei inúmeros convites dele. Assumo o erro. Quando soube que lá tem um piano
de cauda que, como quase todo hotel desse estranho Brasil, pianistas, mesmo
profissionais como eu, não podem tocar, criei uma antipatia fomentada
corretamente pelo meu próprio pai. Infames os gerentes que mentem dizendo que “o
pianista levou a chave” para justificar o piano trancado. Quanta violência
cultural se perpetra nessa país. Devem achar que o piano será estuprado. Só no Hilton
de Belém que, por sinal, possui um inacreditável Steinway & Sons, o
melhor piano do mundo, pode-se tocar. Registro um beijo para os músicos e
cantores amigos de meu pai.
Outra lição que aprendi com ele
foi a crítica. Meu pai foi “o sujeito mais crítico do mundo”. Mas nunca perdeu
a ternura, a poesia e a sensibilidade. O olhar crítico faz ver a vida de uma
forma mais realista. Devo o pouco ou
muito de crítica que tenho à filosofia e a meu pai é claro. Ele zombava do
mundo, ria, gargalhava, se divertia, adorava uma piada. Mas nunca teve um único
arranhão ético ou de honestidade em toda sua vida, coisa rara. Passou isso para
os filhos seriamente. Nos últimos tempos ficou bastante emotivo, uma manteiga
derretida. Se uma vida foi vitoriosa e inteligente, foi essa.
Uma das formas de inteligência
dele foi no ótimo trato com os filhos. Quem dera eu ter sido como pai um terço
de o que ele foi para seus filhos. As viagens, os passeios, as caçadas e
pescarias, as aventuras, os esportes, o apoio infinito a tudo que eu inventava
quando criança e adolescente. Como dizia um primo meu, ele topava tudo, e era
totalmente parceiro. Isso é ser pai, e sem ser piegas ou frouxo. Era um herói. O
Fusca e o Impala, os carros que me serviram de aprendizado na direção que,
todavia começou transgressivamente aos 15 anos de idade, por incentivo dele,
totalmente seguro e confiante. O
poderoso modelo musical, com um gosto refinado para o jazz e a MPB. As
amizades verdadeiras que o amavam e viam nele um conselheiro maravilhoso,
honesto e sensível. É claro que meu pai teve defeitos, todo mundo tem, mas ele sabia
voltar atrás, desfazia coisas, recomeçava e sempre foi totalmente humilde.
Foi um “virador”, como ele mesmo
dizia. Trabalhou no Banco do Brasil à noite, na compensação e de dia fez de
tudo um pouco, de loja de chocolate a transporte escolar, com Kombis e depois
ônibus, no meu Colégio Zaccaria, no Catete; de oficina mecânica a uma ilha cheia
de gado no Rio Paraíba em Vassouras; de músico profissional em solteiro,
baterista com o grande amigo e cantor Miltinho, a amante da gaita nas noites do
Rio.
O pai de ninguém é um pai
qualquer, todos são lindos e especiais, assim é a figura do pai, ou deveria
ser. Há pais de todos os jeitos, formas e tipos. Às vezes vejo filhos se
esfregando lindamente nos pais, é a poesia viva, corporal, do amor e do carinho
familiar. O pai talvez seja mais “carente” que a mãe. Todos enaltecem o amor e
a primazia da mãe, e às vezes parece que nós, pais, ficamos meio esquecidos. Há
que se cuidar disso. Pais “falham” tremendamente por excesso de
responsabilidade, trabalho, formação, sucesso, dinheiro e falta de
vagabundagem, da melhor qualidade e delícia com os filhos. A impressão é que
meu pai não falhou em nada e, objetivamente, foi sim o melhor pai do mundo.
Mesmo que não fosse o meu. Espero que outros pais possam se espelhar no exemplo
desse cara, a minha grande sorte da vida. Esse foi o homem da minha vida. Cuide
muito do seu. (Zeca, do Jornal, não precisa mais mandar exemplares semanais
para o Rio. Meu pai lhe adorava).
Hoje apenas Jean, o filho do
Eugenio Carlos de Aguiar.
Muito lindo, Jean!! Me emocionei em vários momentos... Não só pela lembrança da pessoa que conheci, hoje vejo que tardiamente, mas também pelo sentimento de "pai" que seu pai lhe deixou. Com defeitos e qualidades, como todos nós, mas com uma presença que deixou marcas positivas, pelo menos em você, que foi aquele de quem eu pude ler um depoimento. Ele vai deixar... Já está deixando... muitas saudades!! Não foram muitos anos desde que o conheci, mas o tempo, mesmo relativamente curto, em que convivemos aos domingos, foi suficiente para eu sentir o quanto ele era especial. E eu posso falar, sem modéstia, que fui abençoada, por ter sentido o carinho e admiração verdadeira que ele tinha por mim, o que, vindo de uma pessoa sensível e com vasta experiência musical, me fez, e me faz, sentir uma pessoa melhor. E o que é mais importante do que uma pessoa que consegue fazer a gente se sentir melhor, ou querer ser melhor ainda??
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