Nossos irmãos mais próximos e tão lindos
Publicado como inauguração da coluna semanal "Pensar" no jornal O Anápolis (Goiás)
Publicado também no jornal O DIA SP
Sugeri o nome de “Pensar” para a coluna esta, do nosso O Anápolis. Que bom que foi aprovada. Pensar é algo que parece que anda em baixa no mundo. Mas este fato não aponta para a escolha do nome da coluna como uma contradição. É exatamente porque está em baixa que o nome “ideal” deve ser esse. Alain Tourraine, filósofo francês disparou: “Eu não sou um legislador, sou um transgressor.” Aí está a uma das essências mais bonitas do pensar. O pensar não se intimida, não se anula e não se derrota. Nas ditaduras e nas guerras o que mais se tenta cercear é o pensar. Nunca se conseguiu. Sartre disse “Jamais fomos mais livres do que sob a Ocupação alemã” (RONALD ARONSON, Camus e Sartre - O polêmico fim de uma amizade no pós-guerra). A revolta e a sobrevivência impunham um pensar. Produtivo, reativo, silencioso, mas denso e poderoso.
Por pensar também se entende a produção, o lado externo e de publicação de o que se pensou. Assim, esse “pensar” não é apenas uma atividade mental, mas um conjunto de atividades que envolve, em sequência, o olhar, a análise, a reflexão, o conceito, a crítica e, claro, a produção. Só que para isso é exigido um estudo complexo antes. A crítica, por exemplo, passou a ser temida e saiu de moda. Antigamente nas salas de aula de universidades havia professores que eram cientistas e intelectuais. Esses representavam a segunda parte da frase de Touraine, eram bons transgressores. Hoje são temidos, em muitos casos, os patrões querem apenas empregados obedientes, um fast food do saber. É a tragédia da educação vitimando os jovens que não aprendem a pensar.
O grande sociólogo francês Edgar Morin, na obra Introdução ao pensamento complexo, após alertar para a “nova ignorância” e para a “nova cegueira”, ensina que “as ameaças mais graves em que incorre a humanidade estão ligadas ao progresso cego e incontrolado do conhecimento (armas termonucleares, manipulações de todo tipo, desregramento ecológico etc.)”. Esse problema talvez tenha uma só raiz: a desumanização das relações e sua substituição por conceitos tecnológicos, materiais e utilitarísticos. Não há mais romantismo, amor, delicadeza, gentileza e carinho nas relações.
A filosofia é a mãe primeira da sabedoria. Ela mostra, ao longo dos séculos, que sem ela todo pensamento sobre um determinado objeto de pesquisa ou análise será menor. Mesmo que social, científico ou familiar. Não há campo restrito ou área imune ao pensar. Isso não quer dizer que o único caminho fosse um banco escolar de um curso de filosofia. Mas quer dizer que com essa ausência do filosofar na sociedade do consumo e nas famílias nucleares e isoladas há um buraco na formação das pessoas. Esse hiato, principalmente nos cursos de 2º e 3º graus, e mesmo em pós-graduações, não permite formar pessoas, profissionais, cidadãos e familiares mais aptos, mais inteligentes, mais geniais e mais criativos. Nem mais amigos e amorosos.
Não se queira, apressadamente, supor em qualquer “reserva de mercado” da genialidade ou mesmo do sentimento para a filosofia. Mas nenhum tema é estranho a ela. No pesado Dicionário de filosofia, de Nicola Abbagnano, por exemplo, dentre conceitos “técnicos”, há os verbetes Amizade, Amor, Deus, Divertimento, Emoção, Otimismo, Paixão, Poesia, Prazer, Racismo, Razão, Religião, Sentimento, Verdade, Virtude e outros tantos. Percebe-se que qualquer tema é objeto da filosofia. Por isso conversar com alguém ligado à filosofia pode ser tão instrutivo, tão valioso. Mas sobretudo tão divertido e prazeroso.
Cícero, um grande filósofo romano, dizia que somente a sabedoria suplanta a amizade. Realmente, a sabedoria faz com que os conceitos sejam dosados, refletidos e tudo encontre um lugar serenamente próprio e perfeito. Ainda que para um problema insolúvel. O pensar pode não “resolver” coisas, mas ao menos não se ilude com coisas erradas, fantasiosas e imperfeitas. Isso já é muito em épocas de misticismos e crendices desenfreadas. Outra filha querida da filosofia é a lógica, que se define como pensar corretamente.
A falta de reação da sociedade, por exemplo, quando deputados se aumentam em 67% e se descobre que no Judiciário os salários são ilegais, acima do teto, precisa ser “pensada”. Isso mostra apenas um típico caso de alienação social e, de novo, a falta de um pensar produtivo, um que reaja e se indigne. O pensar leva à busca do certo e do errado, ainda que possa ser apenas uma busca e que o resultado não seja dos melhores. Pouco importa. O problema é que abrir mão da indignação, que é um elemento próprio do pensar, dá no que teorizava o poeta alemão Bertold Brecht, sobre o “apolítico”. É o imbecil que não imagina que da sua alienação nascem mazelas sociais, como o menor abandonado e a prostituição infantil.
Esse lado do pensar é dos mais interessantes: a crítica e a busca da compreensão de certos fatos sociais. Por que, por exemplo, autoridades públicas se sentem encorajadas a maracutaias infinitas? Porque sabem da ausência de reação da sociedade. Essa ausência de reação é exatamente a ausência de pensar. Bolsões imensos da população brasileira que vive na miséria financeira ou cultural não conseguem pensar a ponto de reagir. Essa é uma das grandes tragédias do país.
Há não poucas cidades no Brasil que se dizem “poderosas” por algum fator e não têm uma única livraria. Há igrejas, barzinhos, baladas, carrões, shoppings, artigos luxuosos, mas não há uma livraria. Como é isso, berraria um europeu? Como uma sociedade pode “existir” sem livrarias? Que tônus intelectual terá uma gente não acostumada a livros? Por livraria não se entenda uma “venda” de livros técnicos de uma ou outra área, nem religiosos, segmentos malandramente “rentáveis”. Livrarias são espaços culturais. Há quem não pare para pensar nisso. Escolas, prefeituras, lideranças deveriam se ocupar disso. A livraria estimula e maneja saberes plurais, arte, cultura, modos, gastronomia, ciência, esporte, informação, educação e integração da pessoa a sociedade. Não se ouse dizer que a Internet cumpre esse papel. Isso seria um sacrilégio.
A atividade de pensar nunca se nivelou por baixo. Os ícones são esgarçados e desconcertantes. Vão de Florestan Fernandes a Einstein; de Chico Buarque a Norberto Bobbio; de Cazuza a Aristóteles. Crianças tinham que entrar nesse mundo aberto, maravilhoso e infinito do conhecimento. Mas só com uma reação dessa sociedade do imobilismo é que se conseguirá. A invejável Rafaela Silva, nada menos que uma atleta olímpica brasileira, “porque perde” uma luta, é criminosamente chamada de macaca. Namorados contrariados matam as companheiras. Filhos mimados zangados matam os pais. O defeito numa sociedade assim, preconceituosa e boçal não está na falta de consumo e celulares caros, está na ausência de pensar, ver o outro de uma forma humilde e integrada, carinhosa e amistal. O Brasil precisa acordar desse sono da “incultura”. Precisa pensar. Jean Menezes de Aguiar.
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