sexta-feira, 6 de abril de 2012

A sociedade imbecil



A grande prof. Maria da Conceição Tavares, para quem boa parte do cenário brasileiro sempre foi imbecil


“Ordem, hoje em dia, encontra-se, em geral, onde não há nada. É um sintoma de deficiência.”* Brecht.
  
Conviver com a imbecilidade é difícil. Sendo que, em regra, todo imbecil é “ordeiro”, a imbecilidade cansa; e não gargalha. Grandes filósofos teorizaram tanto a imbecilidade em si como a dificuldade do convívio com ela, ao mesmo tempo que, não tão paradoxalmente, gastaram intermináveis horas estudando e teorizando o fenômeno, atraídos por ele. A imbecilidade tem desse misto, ao mesmo tempo que gera repulsa pela mazela em suas soluções e visões de mundo – só produz errâncias, defeitos, desastres, decisões burras etc. –, atrai à teorização, como que num encanto, um objeto que desperta interesse, conquanto não aderência. Carl Sagan (O mundo assombrado pelos demônios) tem um capítulo intitulado “Não existem perguntas imbecis”, mostrando que a criança, pura, faz todo tipo de perguntas, já o adulto pede desculpas por “perguntas imbecis”, é o medo de ser imbecil, quando na verdade esta adulto já mostrou ter sido, ao se desculpar. Nenhum questionamento é imbecil, como ninguém é totalmente não imbecil. Há certa democracia na imbecilidade.

Mas o que é imbecilidade? Aqui, no que interessa, numa análise mais social e considerado alguma objetividade, poderá ser uma homogeneidade por certos “padrões” identificáveis com fatores como: preconceito, discriminação, provincianismo, clientelismo, paroquialismo, fundamentalismo, radicalismo e tantos outros tônus negativos e obrigatoriamente considerados imbecis. Uma sociedade que aposta nos “hipócritas do bem”, expressão do filósofo Luiz Felipe Pondé (Contra um mundo melhor, p.152), esses que vivem jurando que a felicidade “virá”, ou nos “moralistas e santos”, essa gente basicamente desonesta cujo traço mais raro é a “retidão” conforme ensina Nietzsche (Crepúsculo dos ídolos, número 42), é essencialmente uma sociedade imbecil. Não há outra palavra. Quem quiser se magoar, sinta-se à vontade (e mantenha-se longe).

A vida numa sociedade imbecil pode ser composta por esses fatores acima indicados, cada um deles com seus subprodutos, tudo razoavelmente nítido para um observador atento. Assim ter-se-ia:

Preconceito – uma sociedade preconceituosa tenderá a ser fechada, desconfiada e não evoluída e aberta a novos conhecimentos e tecnologias; trabalhará com valores próprios e tacanhos, baixos e nitidamente atrasados, como machismo, racismo, justificações à escravidão, nazismo, minoração da mulher, intolerância; também visões criminalizantes e autoritariamente punitivas e penalizantes sobre aborto, maconha, homossexualismo, liberdade da mulher etc. Ainda, os padrões de entrada ou acesso do estranho ou forasteiro numa sociedade preconceituosa obedecerão a testagens às vezes difíceis, porque subjetivas e dúcteis, ao sabor de algum chefe, cacique, ou patrão – invariavelmente o boçal mor de plantão, estima-se –, tudo realimentado pela permanente espuma social desses valores atrasados  no hermetismo autoprotetor e manutentor daquela sociedade. Com o preconceito não há diálogo, só aderência ou guerra. Clifford Geertz (Nova luz sobre a antropologia, p. 70) ensina que não há nada de ofensivo em se exercer a personalidade, colocar o próprio estilo de vida ou pensar acima dos outros. Mas isso não quer dizer colocar uma forma de pensar truculenta e energúmena, atrasada e discriminatória sobre o modo de pensar do outro; aí haverá a baba do preconceito.

Clientelismo – com ele há preferências, proteções e manipulações para se obter vantagens, só que tudo borrado por um assumido baixo padrão ético, inclusive no que tange à educação de jovens que receberá a lenha desse baixo padrão para queimar; esta sociedade não terá pudores ou vergonhas em falsear verdades, manipular concorrências, documentos e concursos. Garantirá vantagens e enriquecimentos totalmente incondizentes com seu padrão de conhecimento, genialidade, cultura, inventividade, informação e formação. O clientelista não precisa de grandes e densas formações, porque conta com ajudas, favores, filas furadas, adiantamentos, sorteios vencidos, pistolões, amizades putáricas, políticos e gestores do Poder safados e concorrências manipuladas. Não precisa ser inteligente, culto, genial, preparado, nada. Sua garantia de inserção está nas relações políticas, profissionais e sociais “poderosas”, ou seja, essencialmente desonestas. Aqui há se aprender com Darcy Ribeiro (Confissões, p. 298), “Existe uma intelectualidade vadia pregando que a direta é burra. Não é não.” Só que a sagacidade da direita migrou feliz para a esquerda, quando esta ganhou o poder. Agora uniformizou-se a sagacidade e a desonestidade: está em todos os lados.

Paroquialismos – pode haver aqui certa confusão com provincianismo, devendo não se desprezar o plural, querem-se vários paroquialismos dentro de uma sociedade provinciana; conquanto o provincianismo seja mais social cultural, no sentido de uma organização geral de toda uma sociedade, um traço indelével de uma cultura, os paroquialismos poderão ser entendidos aqui como diversos movimentos existentes, totalmente parecidos um com o outro em termos sociais, organizados por ideologias, igrejas ou religiões diferentes; ou seja, uma sociedade provinciana poderia ser paroquial ou não; sê-lo-ia se fosse formada por grupos divergentes e até antagônicos, com a característica da hipervisibilidade tipológica em todos eles, cada um “obediente” a uma paróquia ideológica, religiosa, igrejal, política ou qualquer que seja o balcão ou agência. Por outro lado, o provincianismo “perde” [visibilidade nuclear] com a observação de Clifford Geertz (p. 216), quando mostra que “O cosmopolitismo e o provincianismo já não se opõem; ligam-se e se reforçam. À medida que aumenta um, aumenta o outro.” Há, então, uma densificação para ambos os lados. Porém, como esse neocosmopolitismo é influenciado pelos preconceitos do provincianismo (veja o lixo da música sertaneja vitimando também cidades grandes), ele se torna imbecil e a fuga cessa, dá-se o triunfo da imbecilidade, o suicídio passa a ser a salvação.

Fundamentalismo – a sociedade imbecil deverá ser fundamentalista, não propriamente um fundamentalismo político, mas um nitidamente religioso, catequético, dogmático, autoritário, conservador e hermético (filho da puta mesmo), no qual qualquer conceito de fora pode ser uma “ameaça”; o fundamentalismo aparecerá na superconcentração panfletária do viés religioso, até em batismos de nomes de pessoas, de empresas, de bairros, de ruas, de letreiros, de anúncios etc. invocando deuses e entidades míticos e sagrados violentamente defendidos ao ponto de desavenças ou guerras, entre grupos ou mesmo dentro de entidades familiares. O imbecil de plantão por fundamentalismo é dos piores e diversas são as formas de se referir a ele. Sarah Blaffer Hrdy (Mãe natureza, p. 25), discutindo a imbecilidade do senador Rick Santorum, da Pensilvânia, com o seu conservadorismo e atraso sobre o aborto, referindo-se às “porções mais arcaicas de seu cérebro”, finalizou dizendo que aquele “mamífero” se sentiu ameaçado por ideias e quis partir para a briga, precisando ser contido em sua estupidez.

Radicalismo – será uma tônica da sociedade imbecil a não abertura, a oclusão ao novo, sendo que defensiva ou comissivamente o tônus do radicalismo permeará a visão de mundo dos socialmente imbecis; é claro que numa dada sociedade, geograficamente considerada, haverá pessoas formalmente educadas e adestradas ao trato social comportado, passivo e não agressivo, mas por trás da passividade ou mesmo educação efetivamente existentes poderá ser percebido o trato do radicalismo quando um valor, uma visão ou um modo de ser seja contestado. O radical tem que ver com o teimoso, assim não ouve, espera uma pausa para continuar a falar; não aceita, busca melhorar a ideia para convencer o outro; não evolui, tenta tirar algo de utilitário ou consumista na ideia alheia somente para melhorar a própria ideia; não abre mão do que pensa, tem sedimentos mentais aos quais sobre suas ideias rácicas, étnicas e totalitárias, não interaje.

O plano da imbecilidade comporta exceções. Uma sociedade pode ser imbecil e conter carinho e amor, como também produzir fomentos e algum progresso, desde que mecanicista, não propriamente intelectual, poético, artístico ou gracioso. Pode, não é a regra. Isso é assim porque uma sociedade é composta de pessoas efetivamente diferentes. A “homogeneidade” estudada aqui não é tão pessoalmente isolável e de verificabilidade geral que “obrigue” a todos a serem iguais. Esta advertência deixa evidente que o que se chama por imbecil, ligado a uma sociedade é ou pode ser um pano de fundo, um princípio constituidor daquela cultura, suave ou densamente considerado.

Por outro lado, os fatores isoladamente considerados – preconceito, discriminação, provincianismo, clientelismo, paroquialismo, fundamentalismo e radicalismo – parecem compor um menu infernal e desgraçático indiscutível, ao qual ninguém “quererá admitir” viver sob tais influências: todos negarão ser assim. Será esperado que o agente pertencente à sociedade imbecil e influenciado por tais fenômenos, simplesmente renegue a imputação, uma vez conscientizado da negatividade que os fenômenos induzem ou querem retratar. Isso mostra que, uma vez localizados os fenômenos numa sociedade x ou y não será um erro crasso teorizar estar-se diante de uma sociedade imbecil.  Como ensina Nietzsche (Além do bem e do mal, número 253), há “verdades que são mais bem reconhecidas por cabeças medíocres, por lhes serem as mais adequadas; há verdades que encantam e seduzem apenas os espíritos medíocres”. Se os medíocres são unidos, os imbecis se penetram.

Também, talvez todas as “sociedades” que compõem um país podem conter um ou mais dos fatores apontados, ou famílias ou pessoas orientadas por eles, o que efetivamente dificulta a afirmação peremptória de que esta ou aquela sociedade é imbecil e uma outra não é. Entretanto, esta dificuldade metodológica não pode ser escudo para que se nivelem todas as sociedades por cima, como se não possuíssem defeitos e desgraças oriundas de um padrão imbecil objetivamente considerado, e, aproveitando, ninguém fosse imbecil. Essa bruma que se quer, de se patrulhar a teoria da imbecilização dá-se em nítido espírito de corpo de quem teme ser acusado de imbecil. Quem tem a segurança de não caber na bitola da imbecilidade, ri, gargalha e se diverte com todas as teorizações e pensamentos ligados à imbecilidade.

Um artigo de 6 minutos como este se presta, meramente, para que no plano pessoal, um agente que perceba pertencer a uma sociedade imbecil, busque pistas, saídas, manejos e soluções individuais para si, no sentido de se libertar do gênero imbecil a que provavelmente pertence socialmente, não propriamente por uma escolha ou vinculação genética, mas por um grande pano de fundo que cabe àquela sociedade à qual está inserido, quando se lhe analisam fatores sociais de ação e reação.

Particularmente, o imbecil possui traços nítidos. Por exemplo em relação a este texto, veem-se os possíveis traços de imbecilidade:
1º traço de imbecilidade é achar que um texto assim “não deveria ser escrito”, um que tentasse teorizar a imbecilidade;
2º é achar que “o texto é agressivo”, não é “de bom tom”, contém “palavras fortes” etc.;
3º traço é achar que “o autor de alguma forma é agressivo”, tem uma "linguagem agressiva";
4º é achar que o “o autor quer ser superior” aos imbecis, ou mesmo ao mundo todo.
5º é achar que “é errado ver a sociedade como imbecil”, que há um complexo de superioridade ou outra coisa parecida;
6º traço é achar que “esses traços aqui, numerados, é que são imbecis”;
7º é “cair” num desses traços acima e não se ver como um imbecil.

De minha parte, isoladamente considerada, sou forçado admitir que pertenço a uma sociedade imbecil; se a sua não é, que bom, mas indique pros amigos onde fica. Jean Menezes de Aguiar.

* Bertold Brecht, no original: “Ordnung ist heutzutage meistens dort, wo nichts ist. Es ist eine Mangelerscheinung.”

3 comentários:

  1. "A" : "Cujo quem para...

    “O que nos força a pensar é o signo. O signo é o objeto de encontro; mas é precisamente a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural; ele é, ao contrario, a única criação verdadeira. A criação a gênese do ato de pensar no próprio pensamento.” Guilles Deleuze

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  2. Adorei o blog; tem poucos comentários; é provável que “boa parte do cenário brasileiro sempre foi imbecil”

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