A mãe epistemologia e sua cria, a ciência
Juristas “puros” torcem o nariz para a imbricação entre ciências exatas, básicas ou duras e ciências humanas. Negam peremptoriamente a migração metodológica, principalmente após o “fim” do cartesianismo e do fisicalismo, dois movimentos “históricos” densos e marcantes como episodicamente temporais no curso da ciência ou da filosofia. Sartre (Questão de método), diz que “as épocas de criação filosófica são raras” e arrola 3 delas, entre o século 17 e o 20: o momento de Descartes e de Locke; o de Kant e de Hegel (“a mais ampla totalização filosófica é o hegelianismo”, Sartre); e, finalmente, o de Marx. Mas o que se vê em raros metodólogos jurídicos e os de fora do direito ligados à quadra da metodologia da ciência básica, física, química, matemática e biologia, retrata uma “possibilidade” interessante de uso e aproveitamento.
Não há se discutir aqui a filosofia da ciência como um todo e uma metodologia “geral” ao direito, mas pontualmente itens saídos da matemática. A questão não é nova e outras áreas já criaram farpas em relação a ela. O [aqui] “pensador” Ernst Mayr, biólogo famoso, morreu reclamando em seu último livro (Biologia, ciência única), dos filósofos da ciência que não compuseram uma filosofia da biologia. Discutindo o fisicalismo, ensina que a Evolução, de Darwin, não contém uma simples fórmula matemática; como afirma que as teorias de Einstein e o que se descobriu na década de 1920 (quântica, relatividade, física das partículas elementares) não interessam a outros cientistas.
Este exemplo da biologia que se encontra muito mais aparentada com física e filosofia da ciência em geral e que revela uma crise, ao mesmo tempo que uma reivindicação para uma especialidade, se presta como ingrediente paradigmático em relação ao direito. Se há, entre ciências básicas, o reclamo de inutilidade metodológica por migração (Carnap, Hempel, Nagel, Popper e Kuhn ignoraram a biologia), reinvindicação que não deveria existir para a filosofia da ciência, a mesma suposta inutilização do “outro” método pode ser vista com suavização no direito.
A tese é: ou a filosofia da ciência é imprestável para trabalhar metodologicamente a ciência e uma clivagem epistemológica precisa ser concebida para se contar com tantas filosofias quantas ciências houver, ou os reclamos especialistas são inexatos e a filosofia da ciência se aplica genericamente. Há ainda uma terceira via: a de que possa existir “gêneros” metodológicos, no sentido de que haveria prestabilidade metodológica por grandes áreas, por todas as classificações, ciências exatas, humanas e sociais. Mas, de novo, há se reparar que mesmo dentro das ciências exatas há reivindicação de especialidades, quanto há negação de métodos outros [da física] que não se aplicam à biologia.
É claro que as ciências não são caixilhos cabendo toda uma área inteira da metodologia dentro de si, devendo, por exemplo, a biologia receber toda a metodologia física. Mas chegar ao tríplece ponto que Mayr chegou, de 1) negar peremptoriamente áreas outras (física); 2) negar que os filósofos que se dedicaram à filosofia da biologia não conseguiram compor este estatuto; e 3) reclamar uma especialidade metodológica para a biologia, ainda que supondo-se perfeitamente hábil e crível os objetos biológicos dotados do fator “vida” que desconcertam quaisquer pesquisas, métodos e procedimentos, é ter a certeza de que a discussão está longe de ter acabado.
No campo estritamente jurídico, ninguém menos que Castanheira Neves (Apontamentos de metodologia jurídica) mostra que o pensamento jurídico está em crise, tendo ruído o sistematismo dogmático-conceitual próprio do normativismo moderno e continuado no positivismo legalista do século 19. Se o direito é outro, se sua função e finalidade são de se realizar numa situação prática – Ihering afirmava “O direito existe para se realizar” – a vida [verdade] do direito é o próprio direito. Talvez uma questão central em Castanheira Neves seja – que método a realização do direito convoca? E aí questões serão estanqueizadas; o pensamento jurídico stricto sensu será diferente da lógica jurídica que será diferente da filosofia do direito que será diferente da teoria do direito e que será diferente da ciência do direito. De novo, cai-se na necessidade de uma “justificação prática” e aqui a metodologia não buscará construir nem um método nem conhecer o método praticado, mas refletir o problema da realização [vida e verdade] do direito, só que nas suas intenções, nos seus pressupostos e no seu sentido.
Na obra do professor titular da Unesp, Jairo José da Silva, Filosofias da matemática, há farto material para quem trabalha com metodologia científica pensar migrações possíveis, incompossíveis ou até aporéticas, considerando-se o direito – reparar que Tercio Sampaio Ferraz Jr (Introdução ao estudo do direito) trabalha com um manancial de “argumentos jurídicos” (argumentos ab auctoritate, a contrario sensu, ad hominem, ad rem etc) que guarda semelhança instrumental com os métodos matemáticos. Basicamente há no livro de Jairo 7 métodos descritos: redução ao absurdo; exaustão – Arquimedes; e infinitários, p. 52; princípio do terceiro excluído; e princípio da dupla negação, p. 66; indispensabilidade, p. 70; e axiomático, p. 183. Uma primeira coisa que chama a atenção, numa análise geral da matemática é ser ela um produto da cultura humana da época, mutável com o passar do tempo, em função de culturas. Quando se aprende que é “inútil buscar uma essência imutável da matemática”, p. 22, todo o alicerce do ferramental metodológico ligado à matemática vê-se não curado, e estremece. Haveria, em razão dessa ductibilidade, alguma ponte de ouro epistemológica para se “aproveitar” métodos adotados pela matemática noutras ciências? Essa seria uma indagação interessante.
Essas desontologização [matemática] e culturalização da matemática, mesmo inserindo-se aspas em ambos os termos, parecem autorizar migrações intelectivas nas bases epistemológicas dos métodos até então concebidos em estanqueidades especialistas, os métodos “científicos” e o jurídico. Fica parecendo, esse “axiologismo” cultural “inserido” na matemática que a ideia do rechaço quase que étnico do uso do método da ciência pura pela ciência humana não é tão “ofensivo” assim, não é tão pecaminoso ou incompossível. Esse é apenas um ponto. E apressa-se para afirmar que não há qualquer busca imbecil a um cartesianismo metodológico que supusesse “dura” a interpretação jurídica. O paradigma biológico citado acima em Mayr, de que a filosofia da ciência não presta para a biologia porque esta lida com vida, é um referencial principiológio importante – o direito lida com o conceito de direito enquanto vida e verdade [prática] e um tecido social que se lhe é vivo e por isso móvel em valores. Mas o ceifar daqui o método da ciência básica, ainda que em princípio ou ideia se nos parece uma especialização odiosa, como daquela referida por Sartre quando adverte que sua própria educação era essencialmente ligada ao “humanismo burguês”, um que pegava o pluralismo, “este conceito de direita” conforme afirma Sartre. Eram adotadas ali, e o próprio Sartre o reclama, todas as doutrinas que dividiam os homens em grupos estanques. Mais tarde essa dilacerações no conhecimento serão apontadas por Edgar Morin em nada menos que 3 obras, O método, Introdução ao pensamento complexo e A religação dos saberes.
Se se supuser, corretamente, que não cabe à filosofia apresentar teorias verdadeiras, mas teorias interessantes, conforme se lê em Jairo José da Silva (p. 16); que filósofos nominalistas pretendem desligar a matemática da física para que as entidades físicas ganhassem episteme “própria” consubstanciando um objeto divorciado da matemática (p. 16); que há métodos que extrapolam a demonstrabilidade (p. 20 – considerando esta como uma ponta do tripé metodológico: experimentabilidade, repetibilidade e demonstrabilidade); mais uma vez vê-se que o terreno da metodologia e suas setas de trânsito indicando proibições severas, querendo manter áreas intocadas por outras são completamente bambas.
A filosofia, qualquer que seja ela, se propuser e conseguir montar teorias interessantes, ainda que saídas de sedes matemáticas, num contexto apenas originário, e sua inserção quantificante em qualquer monta, puder ser aplicada ao direito, repitam-se – teorias interessantes – pode gerar adequações válidas. Por outro lado irmãs siamesas como a matemática e a física chegam ao ponto de “rivalizar”, lembrando-se Bachelard em sua deliciosa tese de doutorado, Ensaio sobre o conhecimento aproximado, na qual dicotomiza qualitativamente os erros matemáticos (são erros consentidos) dos erros físicos (são erros impostos), com o fator da inderteminação, dando, de novo, certa “autorização” para se supor estar irresolvida a questão inclusive entre ciências mais que próximas.
Por quase fim, a questão da demonstrabilidade na matemática, à qual métodos podem ultrapassá-la, e aqui não se fala apenas da incomensurabilidade – a primeira grande crise da matemática – mas efetivamente o decaimento metodológico da demonstração em sede matemática, parecendo ficar exposto que nenhum mote por si só consegue responder com satisfatoriedade a uma demanda metodológica, mesmo que método científico para ciência, e no caso do direito, método jurídico para questões jurídicas.
O fato é que se “afetar” a matemática, gera possibilidade de argumentos não ilógicos, ainda que não necessariamente lógicos, para usos nem heterodoxos de métodos, mas não obrigatoriamente proibidos. Quando Jairo José da Silva (p. 65) critica a “persistente crença ingênua de todo matemático de que investiga realidades objetivas e busca verdades que estão aí para serem descobertas”, metodólogos jurídicos que aceitam migrações e usos com alguma intercabiariedade ou superafetação soltam foguetes. Não se trata de chancelar “ainda falta de descobertas” à matemática, como se faz à medicina, esta sequer uma ciência para muitos epistemólogos, mas uma prática. Mas exemplos como a hipótese de Riemann, enunciada em 1859 e irresolvida até hoje, dão uma noção quase que pitoresca de que nem o conteúdo matemático é fechado e acabado em termos de objetos resolvidos nem seus métodos ultimaram solucionar todas as questões “existentes” (ou descobertas).
Parece haver um sem número de fatores desnaturando não o método em si, como quer o panfletário Feyerabend em sua obra célebre Contra o método, mas a possibilidade de ele se aplicar com uma solucionática fechada, uma episteme exclusivista a uma ciência. A ótima generalidade metodológica do físico teórico Mario Bunge, Teoria e realidade, com seus 20 critérios de verdade, daí, por exemplo, pode não ser tão “infame” assim, mais uma vez, se aplicada sob principiologia cuidadosa ao direito. A oclusão do método próprio à ciência jurídica pode chegar às raias da vaidade, ou da falta de um difícil estudo migratório ou intercambiante e juntivo como sugere Edgar Morin. O trono da titularidade jurídica pura na cátedra do direito não consegue impor o absurdo à discussão metódica de aproveitamento de métodos “outros”. Jean Menezes de Aguiar.
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