quarta-feira, 22 de maio de 2013

A jurisprudência defensiva é honesta?

Jean MA
Luz vermelha na entrada

Artigo publicado no Jornal O DIA e no O ANÁPOLIS, semana de 23.5.2013


                Ouve-se muita reclamação de advogados, sobre o sistemático juízo negativo de admissibilidade dos recursos extraordinários. Há até nome para isso: jurisprudência defensiva. É a prática utilizada por tribunais para dificultar recursos judiciais. Parece não haver dúvida que a esmagadora maioria dos recursos para o STF, recurso extraordinário, e para o STJ, recurso especial, não é admitida. Será que a também esmagadora maioria dos advogados não sabe recorrer?
                Na sociedade consumista e da intolerância, todo mundo quer encontrar imperfeições e defeitos nos outros. Mas aqui, a reclamação dos advogados procede. Essa jurisprudência defensiva parece mostrar caninos e causar estragos generalizados a cada dez minutos.
                O falecido Humberto Gomes de Barros, no discurso a presidente do STJ, em 2008, em franqueza desconcertante, ressaltou preocupação com o destino do tribunal. Afirmou que para escapar ao papel de “reles terceira instância” o STJ adotou a “jurisprudência defensiva, consistente na criação de entraves e pretextos para impedir a chegada e o conhecimento dos recursos que lhe são dirigidos”. Site do STJ, 9.6.12.
                “Entraves e pretextos”. Só por aí se percebe que o problema é sério. Essa nova cultura oficial de entraves e pretextos nos recursos vê-se recheada de uma para lá de discutida legitimidade. Isso para dizer o mínimo. A coisa parece estar difundida tanto em cabeças judicantes, como em cabeças assistentes, secretariais etc. Busca-se legalizar a ilegalidade dos tais entraves e pretextos por meio, apenas, do poder oficial.
Em épocas de “o governo pode até declarar guerra desde que os consumidores estejam felizes”, na crítica do sociólogo Zygmunt Bauman (Vida líquida), um verdadeiro o-Estado-pode-tudo, o discurso oficial é pouquíssimo contestado.
Admissibilidade de recursos é matéria de ordem pública, não pode ficar como biruta ao vento da vontade de quem lhe examina e afere. Na visão inversa, de manejo processual de recursos, a sociedade não deveria ficar exposta a um “te peguei” processual no sentido de que se os advogados esquecerem uma vírgula terão os seus recursos judiciais energicamente inadmitidos. Isso não é socialmente saudável, mas também não é nada legal.
                Ninguém esquece que se vive a adoração às ações judiciais. Com o fim da gentileza, da fraternidade, da amizade humilde em que problemas poderiam ser resolvidos fraternalmente e com carinho social, todo mundo parece querer acionar todo mundo na justiça. O Estado, que no momento da Constituição de 1988, chegou a “estimular” essa onda tribunalesca, como um sinal de cidadania avançada, percebeu que entrou pelo cano. Vê-se hoje refém de uma avalanche de ações e recursos. 
                No informativo do escritório Wambier & Arruda Alvim Wambier, IX:17:julho/2012, por exemplo, sobre a jurisprudência defensiva, leem-se expressões como “verdadeiras armadilhas” e “séria dúvida sobre a legalidade e legitimidade dessa prática como meio de atenuação da sobrecarga de trabalho dos tribunais”. Perfeito.
                Apenas dois exemplos grotescos. O STJ não conheceu recursos especiais, ao fundamento de que “as guias” de recolhimento das custas estavam preenchidas sem o número “de origem” do processo (ED em Resp 850.355-RJ), ou porque preenchidas “a caneta” (AI 1.155.821-MG). Parece piada, mas não é.
                Nesta guerra absurda que passou a ser a admissibilidade de recursos, com funcionários fiscais da admissibilidade como inimigos – que tristeza –, todo cuidado é pouco. Nas petições de recursos, então, passa a ser recomendável um tópico inicial, didático e bem formalista, com a demonstração da possível admissibilidade. É o vulgar “esfregar na cara”, no sentido de que o recurso não apresenta defeitos e esdruxularias admissionais. Depois, rezar e torcer para ser sorteado não será pedir muito.      
 
                No recurso extraordinário, por exemplo, além dos requisitos comuns que podem estar “demonstrados” um a um na petição, como cabimento; legitimação; interesse; tempestividade; regularidade formal; inexistência de fato impeditivo ou extintivo; preparo e porte-retorno; prequestionamento (cuidado com essa neurose processual); repercussão geral; ser decisão de última instância, há uma lista de outros argumentos prévios. Tudo isso pode “inibir” o furor inadmissional. Tudo em síntese na 1ª página do recurso.
Ainda, relativamente às súmulas pode conter: não é reexame de prova (279); não é ofensa a direito local (280); a situação está “ventilada” (282); foram atacados “todos” os fundamentos (283); está delineada a “exata compreensão da controvérsia” (284); não se trata de arguição de inconstitucionalidade, ou se se tratar, é “razoável” (285); o plenário do STF não se firmou como a decisão recorrida (286); a matéria vê-se prequestionada (356); o pagamento anexo é “preparo do recurso” e a guia de pagamento está totalmente identificada. Mais um pouco de reza e torcida ajudarão.
Recurso é direito fundamental consagrado na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 8o, h; promulgada no Brasil pelo Decreto 678/92. O problema é que com o remendo inventado conhecido como jurisprudência defensiva, concebida como “entraves e pretextos” visando à inadmissão de recursos, senta-se, há que se admitir, francamente, no colo da ilegalidade. E o Judiciário não pode aceitar esse modo.
Não se trata de um subjetivismo ou apego ao direito das partes, em recorrer, com um “danem-se os tribunais se eles ficarem [mais] entupidos”. A jurisprudência defensiva está sendo utilizada de forma mutiladora. Direitos graves, sensíveis, de pessoas de bem estão sendo solapados por um “te peguei” processual, tudo para se festejar menos um recurso em trâmite.
A mesma sociedade que reclama, muito genericamente, da Justiça, no sentido de achar que o sistema recursal é neurótico, que advogados recorrem indefinidamente, está sendo prejudicada. Os filtros constitucionais, legais ou de súmulas, como repercussão geral, prequestionamento etc., não ofendem ao sistema de recursos. É a regra do jogo. Mas antipatias, implicâncias e pretextos para não se admitir um recurso em que até ilegalidades ou inconstitucionalidades veem-se aparentes, é ofensa à Constituição e à cidadania. Estão sobrando resmungos em fila de supermercado e faltando reclamações institucionais e sérias. Jean Menezes de Aguiar.

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