quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Contrato de gaveta

 
 
 Artigo publicado nos jornais O DIA e O ANÁPOLIS - semana de 7.2.13

                Certa vez um velho cliente me procurou. Havia sido citado, era réu em uma ação judicial movida pelo agora ex-sócio que reclamava a metade de um terreno. O autor da ação tinha como prova um documento particular, típico contrato de gaveta. A assinatura do meu cliente parecia perfeita. O documento também. O terreno era valioso. Por primeiro, perguntei se ele havia assinado; ele negou. Disse que não se lembrava. Chamou a filha, que cuidava do financeiro da empresa e perguntou: filha, o papai assinou isso? Ela olhou lentamente, disse que a assinatura parecia a dele, mas não sabia.

                Eu insisti. Ele se manteve firme, negando. Eu disse que pediria perícia grafotécnica e que se a assinatura fosse mesmo dele, apareceria a mentira. Ele replicou seguro: – pode pedir! Aí, lendo a petição inicial, detidamente, vi que estava afirmado que autor e réu compraram o terreno, mas combinaram em deixar apenas no nome do réu. Daí, o contrato de gaveta. Pelo Código Civil antigo, arts. 97 e 104, esta típica simulação, até confessada, impedia uma ação judicial.

                Foi feita a perícia e viu-se que a assinatura era mesmo do réu, o meu cliente. Mas a juíza de primeiro grau julgou contra o autor, corretamente, com base nos arts. 97 e 104. A simulação não podia ser “desfeita” como queria o autor. Ele recorreu para o tribunal, furioso. Na sustentação oral, disse que era um escândalo, que a perícia houvera reconhecido a assinatura do meu cliente e este iria ficar com a totalidade do terreno. Na mesma sustentação, reforcei o que estava nos autos: o autor queria desfazer uma simulação e a lei não tolerava. Os desembargadores, por unanimidade, julgaram improcedente o recurso e não anularam a transação. Mantiveram a situação.

                Nunca consegui compreender como pessoas não têm medo de fazer contrato de gaveta; fazer uma simulação jurídica. Atos simulados podem gerar verdadeiros desastres financeiros, societários, familiares, pessoais. Já convivi com empresários que se gabavam de ter folhas de papel em branco assinadas por sócios. Eu perguntava: e isso vale o quê? E o ingênuo respondia, que com aquele papel podia tudo. Assistir muito filme dá nisso.

Uma folha em branco assinada nunca foi uma varinha de condão sobre bens e direitos, e nunca será. No mínimo, em uma discussão judicial podem ser investigadas “causas” e “provas” que podem consumir 10, 15 anos num terrível processo, com despesas altíssimas. Já se viu a grafotecnia em relação a um texto, anular e imprestabilizar documentos pré-assinados, pós-assinados, desdobrados em branco etc.

                Problemas que podem envolver um contrato de gaveta: 1) um óbvio elevado risco jurídico (será que alguém “gosta” disso?). 2) a morte do sócio e inventário com interesse de terceiras pessoas estranhas ao contrato. 3) a típica natureza de simulação do ato (fraudes criminal e tributária). 4) a má-fé de ambos, agora ainda mais negativada no Código Civil. 5) eventual divórcio do sócio e o bem ser arrolado pelo cônjuge na meação. 6) possibilidade de o bem ser penhorado por terceiros, por problema do sócio. 7) necessidade de ação de embargos de 3º  para tentar derrubar uma penhora. 7) ação regressiva contra o sócio tendo-se que vencer a barreira da simulação.

                Como tudo na justiça tudo leva muitos anos, vê-se que contrato de gaveta é, sem sombra de dúvida uma péssima forma de gestão. Somente “boa” para quem assume poder ter problemas caros e longos. Se não insolúveis, como o exemplo do início da matéria.

                Somente em 25.10.2012 a 4ª Turma do STJ (veja, a 4ª) entendeu que o comprador pode opor embargo à penhora tendo em mão contrato de gaveta. Mas isso, contrariando entendimento de juiz de primeiro grau e de tribunal. Ou seja, a questão é totalmente bamba.

                Um pouco diferente é um contrato de gaveta com a Caixa, por exemplo, em que há alguma proteção do mutuário pelo Código do Consumidor. Sendo a Caixa o polo forte da relação jurídica, há alguma proteção ao polo fraco, o consumidor. É relativo, mas é assim. Só que entre pessoas no mesmo “nível” jurídico, sócios por exemplo, a situação piora totalmente.

                O contrato de gaveta não vale perante terceiros, sejam filhos, esposa, nora, genro, sogro, outros sócios da empresa, bancos etc. Assim, um terceiro não está “obrigado” àquele contrato. Não tem que “respeitar” um contrato que não assinou. A falta de publicidade de um ato jurídico, principalmente envolvendo imóveis, é extremamente perigosa.

                Ainda, há outros aspectos piores. Se há simulação civil, com certeza poderá haver um crime conexo, além de, provavelmente, uma sonegação tributária. Se envolver mais de três agentes na situação, chega-se ao panfletário crime de formação de quadrilha.

                As conclusões parecem ser simples. Ganhar dinheiro não é fácil, mas sua preservação por toda a vida requer conhecimentos profissionais. Um ato amador, ou um considerado genial, sem ser, pode gerar um desastre. A verdade é que o Direito, secular, conhece todas as espertezas dos que se julgam mais inteligentes do que a lei. Enquanto as espertezas não dão problema, tudo bem. Depois, são noites sem dormir e muito dinheiro gasto. Contrato de gaveta? Qual bom advogado recomenda? Jean Menezes de Aguiar

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