quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Eleição & religião

Rebanho religioso
 
Matéria publicada nos jornais O DIA SP e O ANÁPOLIS (GO) 4.10.12
 
                        Há clichês repetidos como se fossem verdades absolutas. Um deles é: “religião, futebol e política não se discute”. Será? Entre pessoas agressivas e sem educação até pode ser assim. Mas qualquer tema pode ser debatido, basta gentileza e inteligência. Já misturar certos temas sempre foi fonte de tragédia na história da humanidade. Religião e política é uma mistura assim, ruim e atrasada, sempre geradora de fundamentalismos. Se a religião prega, ou deveria pregar, ética, harmonia, tolerância, amor e paz; a política tem como credo coisas bem antagônicas a isso como disputas aguerridas, luta por poder, implementação de ideologias com derrota de adversários etc.

                Não é por outra razão que todos os países considerados avançados não têm religião oficial. Uma religião, qualquer que seja, com pretensões políticas se desnuda, tira a fantasia num descarado “projeto de conquista política”, o que é pernicioso por si só. Deveria haver uma proibição de a religião pretender, enquanto representação religiosa, obter cargos públicos, eleitos etc. O Estado é laico e essa imposição é constitucional. O que justifica uma “bancada religiosa” em qualquer dos Poderes do Estado? Nem Fernandinho Beira Mar é mais suspeito que isso.

                Se isso é “razoável”, ou vão dizer que é meramente a lídima “representatividade” de uma parcela social, que se tivesse a bancada de juízes, promotores, prefeitos e governadores dessa ou daquela religião. Cada uma delas em seus Poderes e entidades. Absurdo. Isso é uma hipótese calhorda. A vontade de tomada de poder por qualquer um é normal. Mas com religião fica tudo fora de cogitação. É um sintoma do atraso.

                O título da matéria da Veja de 26.9.12 é: “A perigosa aliança da fé”. Olha aí. A revista não falou bobagem. É perigosa, é danosa, é errada e o poder pela religião, além de no Brasil ser inconstitucional, não tem como dar certo. É o loteamento da cidadania; o curral da visão de mundo; a lobotomia ideológica a serviço de o que não ser presta a ser um projeto de obtenção de poder oficial.

                Irretorquivelmente correto está o cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, quando na entrevista sentenciou: “Não se pode usar religião para voto de cabresto”. Perfeito. Veja-se o pavoroso que é isso: voto de cabresto. Já o próprio eleitor deveria se envergonhar, se sentir humilhado em votar num candidato quem alguém lhe ordenha a escolha. Eleições manejam a soberania do voto livre, lúcido, comparado, refletido, questionado, feito por alguém que pensa ativamente. Não alguém que age como um boi manso e obediente num curral.

                Escolher um candidato requer análise, questionamentos e, sobretudo razão. Mas “razão” é precisamente o que ninguém menos que Martinho Lutero mais temia, ou odiava. São deles as famosas frases: “Quem quiser ser cristão deve arrancar os olhos da razão”; e “A razão deve ser destruída em todos os cristãos”. Ou ainda “A razão é o maior inimigo que a fé possui; ela nunca aparece para contribuir com as coisas espirituais, mas com frequência entra em confronto com a Palavra divina, tratando com desdém tudo o que emana de Deus.” Parece não haver dúvida que esse estranho “método” da não-razão não é o mais indicado para se escolher um candidato.

                Um exemplo de país atrasado é Israel. Calma. Não se pode medir o “progresso” de Israel pelo poderio bélico de massacrar seus inimigos fundamentalistas religiosos, sob o seu também fundamentalismo religioso. O maravilhoso livro do professor de história da universidade de Tel-Aviv, Shlomo Sand, intitulado A invenção do povo judeu, com 570 páginas é cabal. Israel é um modelo  ditatorial de religião oficial, tendo obrigado até a ateus a terem inscrita nas suas identidades a religião “judeu” (p. 17), que violência. Nas escolas, a história do judeu é um departamento próprio, não pertencente ao setor de história (p. 41), que absurdo. 5% dos nascidos em Israel não são judeus, ainda que paguem impostos, mas a discriminação contra eles, que nem universidade podem cursar, é total (p. 532), que preconceito. Assim, esse violento Estado de Israel não é de todos os “seus cidadãos” (p. 530), mas só dos judeus. Como é bom o meu Brasil.

                Certamente por todos esses conhecimentos históricos sobre Estados com religiões oficiais e suas truculências, nem se precisando ir a países com burca, que a reportagem da Veja sobre religião e política foi categórica: “Em qualquer lugar do mundo, sua mistura é explosiva, deletéria e arriscada”.

                Mas o que ocorre com “candidatos”, esse ser que acorda um belo dia e resolve entrar para a política? Quer dizer, entrar não, tentar entrar. Afora a percentagem de zero vírgula qualquer coisa que efetivamente acredite fazer o bem, se é que chega a essa fração, o que manda é a sede. Sim, sede de poder, dinheiro, salário público, carteirada, motorista, mordomia, negociatas, arranjos, comissões, mulheres bonitas em casas suspeitas, aposentadorias imorais, empregos para os seus e um infindável rol de benefícios, prazeres e delícias.

                Esse mundo da política não deveria ser para um “religioso”, uma pessoa pacífica, um quase-santo. Por favor, não riam de mim. Assim como o mundo religioso não deveria ser “acessado” por candidatos & picaretas, politiqueiros para lá de profissionais e até bem intencionados. Qualquer um pode ir à religião e a Deus. Mas não qualquer um pode ir às eleições e à política.

                O grande historiador brasileiro Boris Fausto, da USP, afirma: “lamentavelmente o Estado laico perdeu a força”. Perder a força é se tornar Estado menos laico, ou, mais religioso. Que perigo. O cineasta Luis Buñuel diz: “Deus e a Pátria são um time imbatível; eles quebram todos os recordes de opressão e derramamento de sangue.”

                São Paulo, não o santo, mas a cidade, parece ter sido loteada em termos de candidatos e “religiões”, conforme se lê na reportagem. Mas outras cidades, onde não há, por exemplo, livrarias para instruir o povo, devem aderir nas próximas eleições ao modelo de curral paulista. O problema é que o ser humano é, maravilhosamente um animal superior, não um ser mentalmente castrado que viva em baias ideológicas e currais de votação. A liberdade, o voto e a democracia custaram muito à humanidade e mesmo a brasileiros. As pessoas deveriam se informar muito e votar por uma escolha soberana sua, não um parto induzido. Jean Menezes de Aguiar

PS. quando falo em "religião" posso estar querendo falar em "igrejas".

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