Rebanho religioso
Matéria publicada nos jornais O DIA SP e O ANÁPOLIS (GO) 4.10.12
Há clichês repetidos como se fossem verdades absolutas.
Um deles é: “religião, futebol e política não se discute”. Será? Entre pessoas agressivas
e sem educação até pode ser assim. Mas qualquer tema pode ser debatido, basta gentileza
e inteligência. Já misturar certos temas sempre foi fonte de tragédia na
história da humanidade. Religião e política é uma mistura assim, ruim e
atrasada, sempre geradora de fundamentalismos. Se a religião prega, ou deveria
pregar, ética, harmonia, tolerância, amor e paz; a política tem como credo coisas
bem antagônicas a isso como disputas aguerridas, luta por poder, implementação
de ideologias com derrota de adversários etc.
Não é por outra razão que todos
os países considerados avançados não têm religião oficial. Uma religião,
qualquer que seja, com pretensões políticas se desnuda, tira a fantasia num
descarado “projeto de conquista política”, o que é pernicioso por si só. Deveria
haver uma proibição de a religião pretender, enquanto representação religiosa,
obter cargos públicos, eleitos etc. O Estado é laico e essa imposição é
constitucional. O que justifica uma “bancada religiosa” em qualquer dos Poderes
do Estado? Nem Fernandinho Beira Mar é mais suspeito que isso.
Se isso é “razoável”, ou vão
dizer que é meramente a lídima “representatividade” de uma parcela social, que
se tivesse a bancada de juízes, promotores, prefeitos e governadores dessa ou
daquela religião. Cada uma delas em seus Poderes e entidades. Absurdo. Isso é
uma hipótese calhorda. A vontade de tomada de poder por qualquer um é normal.
Mas com religião fica tudo fora de cogitação. É um sintoma do atraso.
O título da matéria da Veja de
26.9.12 é: “A perigosa aliança da fé”. Olha aí. A revista não falou bobagem. É
perigosa, é danosa, é errada e o poder pela religião, além de no Brasil ser
inconstitucional, não tem como dar certo. É o loteamento da cidadania; o curral
da visão de mundo; a lobotomia ideológica a serviço de o que não ser presta a
ser um projeto de obtenção de poder oficial.
Irretorquivelmente correto está
o cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, quando na entrevista sentenciou:
“Não se pode usar religião para voto de cabresto”. Perfeito. Veja-se o pavoroso
que é isso: voto de cabresto. Já o próprio eleitor deveria se envergonhar, se
sentir humilhado em votar num candidato quem alguém lhe ordenha a escolha. Eleições
manejam a soberania do voto livre, lúcido, comparado, refletido, questionado,
feito por alguém que pensa ativamente. Não alguém que age como um boi manso e
obediente num curral.
Escolher um candidato requer análise, questionamentos e, sobretudo razão. Mas “razão” é precisamente o que ninguém menos que Martinho Lutero mais temia, ou odiava. São deles as famosas frases: “Quem quiser ser cristão deve arrancar os olhos da razão”; e “A razão deve ser destruída em todos os cristãos”. Ou ainda “A razão é o maior inimigo que a fé possui; ela nunca aparece para contribuir com as coisas espirituais, mas com frequência entra em confronto com a Palavra divina, tratando com desdém tudo o que emana de Deus.” Parece não haver dúvida que esse estranho “método” da não-razão não é o mais indicado para se escolher um candidato.
Um
exemplo de país atrasado é Israel. Calma. Não se pode medir o “progresso” de
Israel pelo poderio bélico de massacrar seus inimigos fundamentalistas religiosos,
sob o seu também fundamentalismo religioso. O maravilhoso livro do professor de
história da universidade de Tel-Aviv, Shlomo Sand, intitulado A invenção do
povo judeu, com 570 páginas é cabal. Israel é um modelo ditatorial de religião oficial, tendo
obrigado até a ateus a terem inscrita nas suas identidades a religião “judeu”
(p. 17), que violência. Nas escolas, a história do judeu é um departamento
próprio, não pertencente ao setor de história (p. 41), que absurdo. 5% dos
nascidos em Israel não são judeus, ainda que paguem impostos, mas a
discriminação contra eles, que nem universidade podem cursar, é total (p. 532),
que preconceito. Assim, esse violento Estado de Israel não é de todos os “seus
cidadãos” (p. 530), mas só dos judeus. Como é bom o meu Brasil.
Certamente por todos esses
conhecimentos históricos sobre Estados com religiões oficiais e suas
truculências, nem se precisando ir a países com burca, que a reportagem da Veja
sobre religião e política foi categórica: “Em qualquer lugar do mundo, sua
mistura é explosiva, deletéria e arriscada”.
Mas o que ocorre com
“candidatos”, esse ser que acorda um belo dia e resolve entrar para a política?
Quer dizer, entrar não, tentar entrar. Afora a percentagem de zero vírgula qualquer
coisa que efetivamente acredite fazer o bem, se é que chega a essa fração, o
que manda é a sede. Sim, sede de poder, dinheiro, salário público, carteirada,
motorista, mordomia, negociatas, arranjos, comissões, mulheres bonitas em casas
suspeitas, aposentadorias imorais, empregos para os seus e um infindável rol de
benefícios, prazeres e delícias.
Esse mundo da política não
deveria ser para um “religioso”, uma pessoa pacífica, um quase-santo. Por
favor, não riam de mim. Assim como o mundo religioso não deveria ser “acessado”
por candidatos & picaretas, politiqueiros para lá de profissionais e até
bem intencionados. Qualquer um pode ir à religião e a Deus. Mas não qualquer um
pode ir às eleições e à política.
O grande historiador brasileiro
Boris Fausto, da USP, afirma: “lamentavelmente o Estado laico perdeu a força”.
Perder a força é se tornar Estado menos laico, ou, mais religioso. Que perigo.
O cineasta Luis Buñuel diz: “Deus e a Pátria são um time imbatível; eles
quebram todos os recordes de opressão e derramamento de sangue.”
São Paulo, não o santo, mas a
cidade, parece ter sido loteada em termos de candidatos e “religiões”, conforme
se lê na reportagem. Mas outras cidades, onde não há, por exemplo, livrarias
para instruir o povo, devem aderir nas próximas eleições ao modelo de curral
paulista. O problema é que o ser humano é, maravilhosamente um animal superior,
não um ser mentalmente castrado que viva em baias ideológicas e currais de
votação. A liberdade, o voto e a democracia custaram muito à humanidade e mesmo
a brasileiros. As pessoas deveriam se informar muito e votar por uma escolha
soberana sua, não um parto induzido. Jean Menezes de Aguiar
PS. quando falo em "religião" posso estar querendo falar em "igrejas".
PS. quando falo em "religião" posso estar querendo falar em "igrejas".
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