Já publiquei artigos sobre migração de saberes dizendo que ninguém leigo “ousa” discutir tipos de anestesia com um anestesista. Primeiro porque naturalmente não entende. Segundo porque percebe, a menos que seja maluco, que se não for médico será muito difícil dominar os sistemas e subsistemas biológicos, orgânicos, metabólicos e de análise de risco envolvidos na prática anestésica, além do tripé epistemológico clássico da medicina envolvendo anatomia, fisiologia e patologia. Por terceiro e último porque nenhum anestesista que se preze dará seu precioso tempo pra “debater” com um leigo um conhecimento médico, técnico, científico, sistêmico e complexo. Assim, quem sabe qual é o melhor tipo de anestésico para uma ciruriga de apêndice, por exemplo, se local, troncular, geral, peridural, raquidiana é, por obviedade, o médico. Não porque tenha estudado apenas a “ponta” da aplicação de cada um dos anestésicos, e sua “utilidade”, mas porque consegue analisar e identificar a inteireza orgânica do quadro de gravidade e necessidade de intervenção a ser feita no doente, em termos pré-operatório. Isto não é argumento de autoridade ou reserva de mercado, é mero conhecimento.
No direito, sistemáticas relativamente semelhantes sofrem revezes. Gente boa e bem intencionada, diplomada em áreas as mais díspares parece acordar num belo dia e ver uma luz acesa dizendo: você conhece direito. De onde advém esse plano psicológico, furor, vontade, sanha ou desejo de saber direito? Talvez de zonas neurais que não cabem aqui discutir, de uma personalidade “proativa” do agente e fontes como jornal, manuais, TV, novelas, livros de prática jurídica, conversas de botequim, apostilas de concurso público e de curiosidade, podendo haver aí, é claro, uma meia dúzia (ou 2 ou 3 dúzias) de livros, que sejam. Além da vaidade, claro. A curiosidade é uma fonte valiosa e admirável para o ser humano, mas a arrogância do querer saber não lhe pode sobrepujar o manejo válido. A arrogância nas mentes vaidosas precisa passar por um tratamento de lobotomização para ficar quieta e não permitir ao agente passar a impressão de ser um Doutor em neurociência, direito, física ou qualquer conhecimento se não tiver estudado o equivalente ao grau que se esforce para vender sua imagem como.
Mudanças sérias houve no estudo do direito, considerando-se aqui, por todos, o que ensina ninguém menos que Tercio Sampaio Ferraz Junior, em sua densa obra, Introdução ao estudo do direito – técnica, decisão e dominação. Exatamente neste livro “introdutório” que muitos advogados, juízes e promotores solapam, vencem-no nos cursos de graduação sem dar atenção ou, depois, sem voltar a ele como um verdadeiro estudioso, paciente, observador, minucioso e com um manejo passo a passo das difíceis teorias e lições ali contidas é que se identifica um direito se não inatingível, para um pensar jurídico profissionalmente comum, mas um essencialmente complexo e de meandros elevados, até em razão da formação filosófica, e uso, de Sampaio Ferraz Jr. em nível de doutoramento em Mainz, Alemanha. Daí, sua contextualizada análise juntiva entre direito e filosofia afastam ou dificultam sobremaneira os novos estudantes e estudiosos que dão os primeiros passos pela filosofia, em que pesem já ter caminhado bastante no direito.
Das mudanças paradigmáticas, talvez a tecnologização do direito seja uma das mais importantes, quando abandona o padrão de uma verdade contemplada, em Heidegger, para ver-se como uma tecnologia dogmática, à qual forçará a vida social e manipulará conceitos, tudo contrário à jurisprudentia romana que se funcionalizava como uma ciência prática. É justamente aqui que o estatuto jurídico se altera ou mesmo migra dum saber eminentemente ético – classisista e fechado, nos mesmos termos da prudência romana –, para um saber tecnológico – aberto e argumentativo – nitidamente não zetético no sentido de “menos” descritivo. Esta nova dogmática tecnológica do direito não se preocupará tanto com conceitos e definições lógicos, mas com cortes na realidade, oriundos justamente das provocações sociais apresentadas que gerará, por exemplo, a manipulação heterodoxa de conceitos como o instituto do casamento nas relações homossexuais, hipótese jurídica que jamais teve verificabilidade teórica, e hoje é cabível.
O pensamento tecnológico não se mantém fixo como uma ciência impermeável, mas dúctil na medida em que a problematização de seus pressupostos se lhe é permitida, já que se não for assim não ultima a criação de condições efetivas para a ação social. Como sua intenção é a decidibilidade de conflitos juridicamente postos, a solução precisa vir, e uma adequada à pauta social não disforme com pressupostos e princípios que fundamentem o mesmo pensamento tecnológico. Ou seja, ele não pode impedir soluções até então eticamente esdrúxulas ou descritivamente proibidas, pois que sua nova epistemologia fê-lo absorver uma ciência que entra em suas hostes sabendo que precisará contribuir de forma aberta para soluções e decisões ligadas a conceitos que poderão ser manipulados. A manipulabilidade conceitual poderá, ser, então, um novo manejo epistemológico para essa dogmática tecnológica que aceitará complexos argumentativos abertos, e não proposições descritivas – sentido zetético – compostas num todo fechado e primitivo.
Daí, a distinção hegelliana entre sociedade civil e Estado, no sentido de um direito cujo objeto seja a disciplina social na forma repressiva e punitiva, própria do xéculo 19, se vê bastante afetada. O saber jurídico transcenderá a um saber dogmático e aparecerá como “teorias sobre ordenamentos jurídicos vigentes e suas exigências práticas” (op. cit.), talvez até com mais pujança nas exigências do que nas teorias.
Por outro lado, a reflexão jurídica não se torna um caixilho aberto e principiológico passivo à prenhez de casos concretos, quaisquer que possam ser. Há uma energia propulsora – “acumulada”, Sampaio Ferraz Jr. – não laica que funcionaliza-se como mote jurídico à sociedade, de forma vetorial, em termos de uma ciência prática. Assim tem-se uma fungibilidade de 4 sentidos mistos: a demanda da sociedade com substratos seus, organicamente sociais e “puros”, nascidos de experiência do tecido social em seu dia a diai; a energia saída do direito para a sociedade como propulsora ou estimuladora – não necessariamente “autorizadora” – de novas demandas; a necessária conformação teorética dessa juntividade – energia/demanda, e mesmo sua circularidade – em termos de uma “organização” tecnológica hábil e possível juridicamente; e um resultado prático disso tudo como perfectibilizável. O último sentido é o responsável concreto pelo pensamento tecnológico, um que se “desliga” dum padrão ético fechado para compor manipuladamente novos conceitos.
A partir daí, o estudo o estudo operacional das 3 antinomias, lógico-matemáticas, semânticas e pragmáticas se complexificam bastante, requerendo um pensar jurídico cautelogo, atento e essencialmente juntivo a outros saberes bem a um estilo de Edagar Morin nas obras A religação dos saberes e Introdução ao pensamento complexo. Escolher valores no universo jurídico envolverá dogmática hermenêutica, dogmática tecnológica, filosofia, antropologia, sociologia da ciência, mas sobretudo uma análise profunda do direito em si, ainda que, conforme ensine Sampaio Ferraz Jr. “direito é uma expressão vaga e ambígua”, o que torna tudo ainda um pouco mais difícil. Fora de um conhecimento essencialmente “consciente” dessa ambigüidade e juntivo (Morin), ter-se-á uma leitura pobre e minorada.
Certos polos das antinomias são por si sós sedutores a uma inferência rapidificada pelo atalho da não mensuração de subsistemas jurídicos e parajurídicos envolvidos. O vulgar “bater o martelo” numa questão e o arrogante manejo em que o siderar-para-vencer seja mais importante do que o refletir-para-conhecer é próprio das mentes primárias e jactanciosas, típicas do baixo clero dogmático.
O aspecto onomasiológico [comum e corrente] da palavra impressiona a leigos e profissionais de outras áreas, quando o aspecto semasiológico [significação normativa] é o que caberá ao jurista captar. Do mesmo jeito que ao historiador, por exemplo, tocará a compreensão do texto, mas ao jurista, além da compreensão a verificação de sua força e alcance, estruturas epistemológicas nada simples. Por isso “interpretar” terá que ver com a escolha de possibilidades comunicativas, dentre um menu plurívoco ou de uma complexidade discursiva. E será por essas advertências que cessará a atividade científica da interpretação quando ela revelar a equivocidade resultante da plurivocidade. Não havendo hipótese de interpretação “única”, “final” e “verdadeira”, enquanto eliminadora de outras, a tarefa da interpretação jurídica se esgota na revelação das hipóteses comunicativas oriundas da multiplicidade que o texto permite. Será má-fé ou ingenuidade pretender-se para a interpretação jurídica a “última palavra” no sentido de seu atingimento da “verdade”.
Assim, o direito pode ser manuseado primariamente, com utilização “rápida” e “enjambrada” de princípios clássicos, em busca apenas de titulação formal do uso deste mesmo princípio, ou manuseado cientificamente, mas aí o último que deverá ser levado em conta será a pressa, o facilismo, o simplismo, os atalhos e as conclusões óbvias. A ciência é democrática quanto à escolha dos manejos, ainda que sua filosofia gargalhe dos imbecis que tudo acham óbvio, simples, fácil, rápido e literal. (Sem revisão ainda). Jean Menezes de Aguiar.
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